Maria
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Diário de Uma Prisioneira ! (IV)
Um chamado trêmulo elevou-se na noite, flutuou um pouco e extinguiu-se, como que extenuado. De onde vinha esse grito? Não seria de dentro dela?

Sua alma navegava na antiguidade, nas asas de sonhadores e pensadores de quem nunca tinha ouvido falar, mas que agora lhe encantavam como o pio aveludado, frágil e distante que ouvia e que a bruma irisada de luar tentava abafar. E mais uma vez o chamado trêmulo lhe cortou a alma. Era como um gemido que crescia ao tom de uma certa angústia, um certo medo.

- Amor, Amor, neste mármore frio, não me deixe sozinho morrer !

Seria esse o medo que sentia neste grito? O medo da solidão, da morte? Ou era o grito desesperado de alguém que ama e não consegue mais vislumbrar a vida sem o objeto de seu amor?

Olhou para o chão, para o luzir do mármore negro e branco onde móveis se miravam. Seu olhar perdeu-se naquele chão, tentando encontrar nem que fosse uma pequena sombra dos lábios que bramiam esse grito desesperado e angustiante.

Que lugar era esse onde se encontrava? Que mundo seus sonhos lhe trouxeram? Não conseguia vislumbrar mais do que o chão brilhante como uma luzerna, uma escada de corrimão forte que parecia subir ao céu, uma janela do tempo...

No fundo da escuridão, uma luz suave penetrava pela janela do tempo aberta. Uma luz calma, azul de cheiro, leitosa, que ao se espalhar, crescendo na obscuridade, trazia em seus braços toda magia de uma noite de primavera. Podia sentir o seu cheiro, a sua proximidade.

Atraída por ela, ergueu-se sobre si mesma e avançou com o passo trôpego, de uma alma errante, na direção do raio prateado.

Aprisionada em sua claridade, diante da lua poderosamente redonda, roçando a montanha, ela desfaleceu as forças da alma. Apoiou-se no umbral. Tinha de se manter em pé. Não poderia titubear diante das adversidades. Não, não poderia mais.

Diante dela, sob o céu noturno, um alto penhasco de sombra recortava um denso encapelamento imóvel de árvores com cimos frondosos, galhos que se projetavam em candelabros regiamente vestidos de folhas e troncos maciços cujas colunas, sustentando esse "santuário do coração", mostravam-se graças a uma abertura no tempo, uma clareira açoitava pela lua, como no dia em que a "lua virou sol".

- Você ! - suspirou ela. Você !

De um carvalho próximo, o pio noturno tornou a erguer-se, subitamente nítido, cortante, trazendo as saudações da terra que agora caminhavam seus pés.

- Você ! - repetiu - Você ! Meu Bocage, meu Castro Alves, meu "Lírio da Manhã". Você !

E assim que falou, o sonho que a acordava prá vida, esvaneceu-se na brisa morna.

Soprava um vento brando, imperceptível e de incomparável ternura, em lentos movimentos que não se adivinhavam, senão por vezes, ao aroma mais acentuado de uma espinheira em flor.

- "Flor espinheira" ! falou a si mesma baixinho. E então lembrou:

- Quem com seus dedos uma flor espinheira tocar, viverá permanentemente na tristeza...

Seria assim mesmo ? perguntou-se. E nunca até hoje alguém respondeu sua pergunta, nem o porque do surgimento dessa lenda tão próxima.

Mas, o sol apagou-se, a lua se esvaneceu, as flores morreram, a "primeira página" do livro se fechou e nunca mais ninguém nem soube onde ele está escondido, nunca ninguém mais encontrou as 7 chaves da porta das palavras escritas nele.

Com esses pensamentos a tristeza invadiu sua alma e contaminou o pouco de forças que lhe restavam para viver. Estava morrendo outra vez...

Quando sua alma se ia deixando levar pela tristeza e a dor das inquietações, eis que em sonhos lhe surge o anjo azul:

- Não desanima minha criança, não se deixe levar pela insanidade e morte outra vez. Vem, toma minha mão e segue meus passos. Eles não sabem para onde vão, mas tem asas e podem voar quando não conseguires mais caminhar.

Olhou para a luz a sua frente. Não conseguia ver seu rosto em meio à claridade. Não vislumbrava sua face. Mas uma imagem se formava em meio à luz. O rosto de um menino, olhar perdido, sonhador, agasalho de frio... Foi a face que conseguiu enxergar em meio ao caos que trambolhava em seu interior.

- Não tenha mais medo, são vozes de crianças o que ouves. Crianças que brincam sem medo de viver. Sem se preocuparem com o ontem ou com o amanhã... Apenas querem brincar e ser felizes !

Aspirou o ar. Os pulmões dessecados reencontraram inebriados a umidade salvadora, que subia até ela em passos largos, num tropel urgente, umedecidos pelo hábito de todas as fontes e o incenso das seivas novas.

Aos poucos a fraqueza deixou-a. Afastou-se do umbral que lhe apoiava. Olhou ao redor. O que via?  

Via-se a si mesma, com 15 anos, selvagenzinha, curiosa, desabrochando prá vida, sorriso nas faces sempre fofas e coradas pelo frio sulino.

Mas, já não tinha crescido? Não era agora uma mulher? Por que continuava sentindo-se menina em cada poro do corpo?

- Não me provoca ! ouviu uma voz profunda dizer.

- Eu adoro provocar você !

Parecia ouvir as brincadeiras, o riso de alegria, a festa interior.

Mas então... Caladas e sem brigas, sem lutas de crianças, as vozes foram embora. Ninguém sabe para onde foram. Apenas se foram, assim, assim, sem deixar endereço, sem guardar rastros e nem pegadas por onde se pudesse um dia, um novo som, um novo acorde de vida encontrar...

Ela curvou-se em si mesma. Olhou o lajeado negro e branco. Sobre ele dobrou os joelhos e foi descendo, deslizando de mansinho. Ao tocar o chão, encolheu-se como um animalzinho, abraçando-se a sim mesma. E a voz do anjo sussurrava-lhe ternamente ao ouvido:

- Mesmo presa, com a marca dos grilhões... Mesmo com os pulsos feridos... É possível, é possível !

Uma serenidade profunda dera lugar a angústia que não cessara de persegui-la no tanto de tempo em que permaneceu em seu desequilíbrio emocional.

- Estou em casa ! pensou, libertada. Estou novamente em casa, dentro de mim, no coração do sol. Em casa... Então tudo é possível ! Tudo ! Tudo é possível !
Maria
Enviado por Maria em 11/07/2008
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