Maria
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Diário de Uma Prisioneira ! (Fim)
“É isso que deseja falar-me, ou há algo mais que queira dizer-me, algo mais rondando seu espírito?”

Era-lhe difícil falar após ter se calado por tantos e tantos anos. Será que ele não conseguia isso entender? E será que não a ouvia? Ela estava, dia após dia falando e falando. As palavras atropelavam-se em seus lábios, as frases saíam entrecortadas e como que arrancadas do peito, numa desordem que a incomodava: sua prisão interior, o aprendizado do primeiro vôo, "A Morte da Ave", O Rei Senhor das Roças, "O Silêncio"...

Estava literalmente esgotada de tanto falar, vazia, a fronte cansada, suada... extenuada...

- “Seja você mesma !” “Deixa falar o seu corpo... deixa falar o coração !”

E ela falava e falava. E parecia sempre pouco, parecia sempre menos. Parecia sempre... nada ! E o desespero a fez perder o controle das palavras, da voz, o equilíbrio...

E tudo falou, tudo falou, mas sabia, ainda hoje havia algo não dito. Ainda existiam palavras ocultas, escondidas atrás de uma porta fechada. Uma porta que ela jamais abrira... assim como nunca, na casa do sol, adentrara por esta mesma porta. Por que?

Tinha medo de si mesma ! Tremia a simples idéia de debruçar-se sobre si mesma outra vez, sobre esta porta fechada, cerrada...

- Mas... que temo tanto ver? Perguntava-se.

- “Liberte-se” - insistia uma voz, escondida num canto do seu coração -, liberte-se prisioneira de si mesma. "Liberte-se, senão nunca poderá reviver".

- Reviver! Reviver! "Prá que reviver? Que quero eu com a vida? Ela fez de mim esta mulher que me amedronta", que me vence, que me tolhe as forças de me esconder. Não quero reviver. Eu morreria agora, de bom grado, grata ! Eu morreria!

E o eco de uma voz, que não sabia quem dissera, mas sabia vinda do passado, da vida de uma mulher, uma guerreira, que sentia-se igual, ressoava em sua mente:

- "É um reflexo do cansaço. Mas o gosto da morte, o sabor da morte, vêm somente para aqueles que se realizaram na vida, quer tenha sido curta ou longa, para os que viveram o que desejavam viver. É como o canto de Simeão: "Meus olhos contemplaram o Redentor; agora só me falta morrer". Mas enquanto um ser não se realizou, enquanto vagou longe de seu objetivo e só conheceu a derrota... não pode desejar morrer... o esquecimento, o sono, o nada, sim... Cansaço de viver? Isso não é a morte. A morte, esse tesouro que Deus nos confia junto com a existência, essa promessa inefável... essa certeza..."

- "De fato" – pensava -, essa voz tem razão. "Não posso morrer agora, seria perder". Só devo viver. "Morrer na derrota, que ridículo!"...

Ela debatia-se consigo mesma. Respirava apressadamente. Por que ainda tinha medo de si mesma? O que lhe faltava libertar de dentro de si? Por que evitava debruçar-se sobre si mesma outra vez? Por que fugia de seus sentimentos mais íntimos?

Precisava libertar-se totalmente.

"Mas no que consiste a liberdade humana? Não era na absolvição de si mesma?"

Não era na devoção a Deus que lhe perdoara os pecados todos na cruz do calvário? Por que ainda os carregava num fardo pesado demais para sua força, para seus ombros cansados? Por que ainda se debatia em pagar pelas dores do passado? Por que não abria o seu melhor sorriso?

- “Só na alegria é possível o reencontro !”

Só na alegria, ela ouvira. E não conseguira entender! Como se auto-condenava por isso. Como se punia por não prestar atenção nos detalhes. E com seu jeito de ser tornara-se em Mal para o coração do sol.

- “O Bem que se tornou Mal e vice-versa !” E ela nem percebera. "Como era difícil definir o Bem e o Mal" quando se viaja nas ondas do tempo.

Tinha ouvido falar que "o Mal é o que você sente como prejudicial a sua saúde moral. O Bem é o que satisfaz seu critério pessoal de justiça."

Justiça, justiça. Essa palavra ecoava em sua alma, tamborilava em sua mente.

- “Estamos sendo injustos com os outros e conosco mesmos.”

Então ela tinha de pensar nos outros. Mais uma vez pensar nos outros. Não conseguia entender. Outra vez? Sempre de novo? Por que? Por que tinha ela de pensar só nos outros, esquecer de si? Toda vida fizera somente isso. Deixara de viver sua vida para cuidar dos outros. Deixara de cuidar de si, seu corpo, sua saúde, sua mente, sua alma, seu coração, para cuidar dos outros. Deixara de viver a vida por causa dos outros. Por causa do que os outros iriam pensar, dizer, fazer... Tanta coisa deixara se perder nas vagas do tempo para ser justa com os outros...

E ela, cansada... deixou de olhar para as entrelinhas, deixou de perceber o pano de fundo da descompensação e da desativação... e... pensou nos outros mais uma vez... não pensou em si. Não levou em conta  o que sentia, pensava... nada... E o nada se fez...

Agora sentia-se como já tantas vezes havia escrito. Assim, assim, com a sensação de vagar perdida, suspensa nos ares. Lembrou-se do que o sábio falou à mulher guerreira:

“Na matemática, aprende-se que nem todas as soluções de um problema são necessariamente mensuráveis. Isto é, decorrentes uma da outra, e traduzindo-se para um resultado positivo. Um caso simples: não sabemos se a solução de uma equação matemática é “mais” ou “menos”. Ou por outra, se se ganhou ou se se perdeu. A simples extração da raiz quadrada propõe um problema filosófico considerável: qual é a raiz de um numeral negativo? Diante da vertigem, da sensação de impossibilidade de nossa mente, tranqüilizamo-nos declarando que é um “imaginário” ou uma língua trigonométrica. Ora, isso é admitir não mais saber o que acontece, pois significa que passamos para um outro plano de estrutura física. Diremos, por comodidade da mente, que “passamos por uma solução de continuidade”ou “passagem para o infinito”.  Que profundo abismo é esse infinito, mesmo que não seja pura matemática! Pois também está presente no cotidiano. E quando nossa mente não mais enxerga uma solução “plana”, a passagem para o infinito, ou o irracional, ou o supranormal impõem-se por si mesmos. Deles emergimos para a corrente habitual da vida, mas a solução já foi, em verdade, encontrada...”

Por que nunca tinha ouvido falar disso antes. Por que levara tantos milênios sentindo-se assim, pairando no ar, sem encontrar as soluções que tanto buscara, as respostas que ansiara? Por que tantas e tantas vezes se perdia na conjuntura dos caminhos tentando achar a solução para tantos nós que os amarravam? E por que, e essa era a sua maior dor... nunca, nunca o sol lhe falara tudo isso? Por que não descera do seu céu, do seu pedestal de sabedoria pra lhe dizer que nem tudo o que perguntava tinha uma resposta clara e definida, concreta. E por que não lhe ensinara que haviam soluções que não se davam senão nessa tal passagem para o infinito?
E ela tanto buscara, tanto brigara e agora percebia que havia lutado em vão... E a pergunta crucial, fora respondida?

Quem era ela? Sabia que era daquelas mulheres que precisavam lutar para sentirem-se elas mesmas. Sabia que se sentia diferente das outras mulheres. Mas por que sentia-se assim não sabia dizer. Quem sabe essa pergunta era uma das que a “passagem para o infinito” poderia responder.

Não se contentava com uma vida comum, com bordados, tricotagens, conversar frívolas sobre o ranço do tempo, sobre os acontecimentos do dia. Não se contentava com uma vida de “terapias ocupacionais”, uma vida construída sobre uma existência vazia.

- “Faça alguma coisa produtiva. Deixe de ser tão vazia...”.

Como doiam essas palavras em sua alma. Como rasgaram seu espírito. Seria ela o contrário do que desejava ser? Seria ela o avesso do que achava que era? Mas, quem era ela?

“À vezes, parecia-lhe ter sido feita para uma felicidade simples, rústica: um homem para amar, crianças ao redor da mesa, para quem fazer doces”. Onde ouvira isso? Lembrara-se das pipocas, chá ou café, nas tardes friorentas? Esse era o desejo de todas as mulheres, ou não? Como saber? Como poderia ela saber do que ia nos cantos dos corações das outras mulheres? Mal entendia e via o que se escondia nos cantos do seu. Sentia-se simples demais diante das outras mulheres. Não que as coisas que as atraíam não lhe tocavam: os prazeres do material, os adornos, a admiração dos homens. Mas logo via que isso não lhe convinha. Queria muito mais da vida do que essas quimeras.

Agora estava diante do fim de uma de suas guerras. Uma das bandeiras que hasteara, por força de regimento, teria de descer do mastro...

Agora via: Era como aquela mulher do passado. Aquela com a qual relacionara sua vida, amarrara suas palavras para que não se perdessem. Como ela, amou profundamente a guerra. Não a  guerra que aquela mulher lutara, mas as guerras que ela agora combatia. A aventura,  a batalha, os embates, a expectativa da vitória, a reunião de forças dispersas num objetivo; e mesmo o medo, a angústia, a esperança de salvar uma situação desesperada, tudo isso lhe tocava, lhe fazia a alma arder... e mesmo sofrendo, mesmo penando, não se aborrecia, não se cansava...

Como podia ser ela essas duas? Seriam elas a mesma mulher? E como conjugar essas com todas as outras, que habitavam dentro de si, e a cada dia aceitar como aceitava, o acordar, o levantar-se de uma delas? Como conseguir ser tanta contradição dentro de um só coração?

Agora entendia tantos caminhos, tantas estradas. Agora entendia tantas atitudes. Todas tomadas para lhe despertar da apatia, arrancá-la do abatimento, fazê-la falar.

- “O coração aferrolhado se corrompe”, ouvira a guerreira. Agora, no seu tempo, essas palavras lhe causavam uma emoção acalorada.

Liberdade ! Liberdade ! Seu coração estava livre. Sua alma planava nas asas da alvorada de uma nova vida, de um novo mundo. Estava viva. Sentia-se a própria vida ! Era diferente sim, mas e então? Que mal havia em ser assim? Estava perto da natureza, possuía alvos, objetivos, valores fundamentais. E era isso que a fazia diferente. Por isso não se satisfazia com o mundo que a rodeava. Por isso colocava num plano totalmente diferente os valores que lhe eram importantes. Por isso estava sempre em desacordo com os que a rodeavam. Por isso era maravilhada com os frutos, com a beleza da vida.

- “O inverno já foi embora. Breve será primavera.” "O sol brilha lá fora..."

Será que ela tinha notado? Será que ela tinha percebido que todos os dias o sol saia de seu esconderijo e lançava seus raios pelo céu azul de sua vida mesmo que ela não os pudesse ver, nem mesmo sua voz sentir?

- “A mim só é necessário te sentir!”

Ela fechou os olhos. As lágrimas correram-lhe dos cílios formando "Laivos Aperolados" em sua face. Olhava para dentro do "Sepulcro do Coração" e via o halo da dor e do sofrimento que passara. Ainda não estava livre deles, sabia, mas já vislumbrava a certeza da vitória. Um silêncio profundo se fez dentro dela. Não era um castigo o silêncio. Não era um preço que devia pagar. Não, não era. Era o silêncio a única voz que conseguira lhe falar ao coração. Era o silêncio a única voz que lhe permitira ver a si mesma, olhar no próprio espelho, aconselhar a própria alma...

Algo se rasgou dentro dela ao surgir desse pensamento. “Algo se rasgou e sangrou dolorosamente. Mas não era esse sofrimento, e sua capacidade de suportá-lo, um sinal de ressurreição?” Reviver ! Ressurreição ! Liberdade ! Liberdade !

Lentamente fechou a porta de seus pensamentos. Encostou o portal das meditações. Quantas portas já não se haviam fechado para ela e por trás dela? Quantas portas já não lhe tinham barrado saídas, trancado entradas e colocado fim em caminhos? Já havia perdido as contas dessas portas...

Mas havia uma porta. Tinha de haver. A porta do seu caminho. Qual seria ele? Ela o via, sim ela o via e nele a luz do Sol. O Caminho do Sol. Era pra lá que queria caminhar. Era para esse caminho que havia nascido...

Tinha de ir. Precisava caminhar. Precisava viver mais um dia. Precisava falar e falar... mesmo que nada ouvisse, um dia... um dia, quem sabe, Deus lhe presentearia com a felicidade plena, com a realização de pelo menos uma parte de seus sonhos.

Agora conseguia compreender que os obstáculos, que o sofrimento e a dor haviam-na desviado dos caprichos comuns a toda gente e a reconduzido para um único objetivo de vida: o seu. O seu caminho. A perenidade do amor e a eternidade dos sonhos. Agora sim sabia quem ela era e para quem e para o que havia nascido...

Fim.



O Diário de Uma Prisioneira foi escrito, nas entrelinhas de alguns comentários que fiz no passado, durante a leitura de um romance que li na adolescência.

Como estou encaixotando minha vida para uma mudança, achei um velho caderno em que escrevia naquele tempo.

Nele, escritas frases que decerto julguei importantes naquele tempo. Ao final delas, o nome do livro: Angélica, Rebelde Guerreira.

Pesquisando os nomes que encontrei nas anotações (Anne e Serge Golon) cheguei a estes sites:

http://pt.shvoong.com/books/1775952-ang%C3%A9lica-marquesa-dos-anjos/

http://www.geocities.com/letomas//marquesadosanjos.html

Caminhando por eles, vi que Angélica era a Marqueza dos Anjos, e que sua história foi escrita em 1956 e lançada em 1959, por Anne e Serge Golon.

Nunca li nada mais sobre a Marqueza dos Anjos, não lembro de ter alguma vez estudado sua história e nem sei se é verdadeira.

Mas as anotações que fiz, me lembraram de lugares onde fui, estradas que caminhei, guerras que lutei, bandeiras que eu ergui. Claro que nem um fio dessas vivências tem algo a ver com Angélica ou com seu mundo e história.

Quem sabe um dia eu possa ter acesso a história completa da Marqueza dos Anjos e possa conhecê-la e me arrependa ou me orgulhe do que escrevi...

"Eu penso que nós veremos em nossos dias o início do reconhecimento dos romances de Angelique, como um trabalho onde se cultiva a espiritualidade sem abrir mão de assumir nossas fraquezas humanas" ( http://www.geocities.com/letomas//marquesadosanjos.html )


Agora ao escrever estas explicações, lágrimas brotam de meus olhos, assim como foram elas que molharam as linhas de cada uma das prosas poéticas que escrevi, e que nem sei se são mesmo prosas poéticas.

E não saberá entendê-las quem não conhece a história, quem não caminhou pelo passado, quem não viveu cada uma das linhas, engroladas, escritas neste diário do passado.

Foi bom, muito bom escrever o Diário de Uma Prisioneira. Foi bom falar diferente, escrever diferente, embora sinto, sempre tão igual. Foi bom, ver nestes textos, o jeito inusitado de escrever de quem considero o maior de todos os poetas, de todos os escritores, meu mestre... meu professor.

Foi bom, foi muito bom escrever o Diário de Uma Prisioneira. Senti-me liberta. Agora me sinto Maria... como sou...como sempre fui: presa e livre... tão livre... e tão presa... que não sei mais o que e nem como, sem a luz do sol, continuar a falar... porque descobri que continuo a ser a mesma Maria, reagente...precisando ser despertada, arrancada do habitual, da mesmice, do marasmo, da apatia, do medo...

Maria.
Maria
Enviado por Maria em 13/07/2008
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