Maria
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Cheiro de Hortelã
Sabe, tem coisas na minha vida que nunca vou esquecer - que lembro a cor, o cheiro...

Por exemplo: balas de hortelã. Lembra aquelas balas de hortelã? Hoje não costumo consumir açúcar então as balas precisam ficar de fora de minha vida.

No entanto, pequena, amava. Só que, nunca podia comprar... Às vezes o pai trazia uma bala de hortelã de troco da garrafa de cachaça ou do fumo que ele comprava no armazém.

Éramos três irmãos. Ele repartia a bala em 3 pedaços. Minha irmã ganhava o pedaço do meio. Meu irmão e eu tínhamos de ficar com os pedaços dos lados que, pelo formato da bala, eram menores. Nós a odiávamos nessa hora, porque sempre ganhava o pedaço maior. E íamos guardando a mágoa.

Um dia planejamos matá-la. Eu tinha uns 8 anos e meu irmão 6. Claro que pela idade, a ideia havia sido minha. Mas ele topou. E começamos a planejar.

Meu pai era tumuleiro. Fabricava túmulos de pedra para os mortos do cemitério. Por causa disso, tínhamos no pátio de casa dois tanques de água. Os tanques eram usados para mergulhar as pedras antes de serrá-las com o arame. Ao molhá-las, evitava-se o surgimento de poeira ao serrar e  o corte ficava mais reto, facilitando a etapa de lixamento e a pintura.

Nós ficávamos de olho nos tanques. Um dia, quando não havia pedras mergulhadas num deles, agarramos nossa irmã que tinha uns 3 anos na época, e a jogamos dentro dele. Ficamos segurando a pobrezinha embaixo da água.

De dentro de casa a mãe viu nossa maldade e salvou a pequena. Nem precisa dizer que levamos uma tunda de laço, além de vários castigos.

Mas, não desistimos. As pedras que o pai tinha no pátio eram enormes como o fogão à lenha que tínhamos na cozinha. As mesmas ficavam espalhadas num canto do pátio. Um dia convidamos nossa irmã pra brincar de pular de uma pedra à outra. Ela devia ser a primeira a pular, combinamos. A ideia era, na hora em que ela pulasse, pisar na parte de trás de seu chinelo. Imaginávamos que ela iria cair e morrer.

Bom, pisamos. Ela caiu. Mas, não morreu. Quebrou o braço. E nós dois quase fomos mortos pelo pai de tanto apanhar.

Enfim, hoje analisando, não é que minha irmã era a mais querida pelos nosso pais. No entanto era frágil desde o nascimento. Nasceu lutando pela vida, com 1 kg apenas e dois meses depois foi atingida por uma doença gravíssima – meningite. Ela cresceu sempre acometida por alguma doença. Por isso era superprotegida e cuidada. Meus pais haviam feito até uma promessa: se ela vivesse iria ser freira. Ela viveu, mas como sempre era doente e fraca meus pais a livraram da promessa.

Já eu, tinha tanto ciúme, que decidi fazer cumprir a promessa e queria eu mesma ser freira. Acho que queria agradar os meus pais. Com 14 anos pedi a eles me levarem para o convento da cidade. Depois da primeira entrevistas, feitos todos os trâmites, me aceitaram no convento. Lá me fui com minha malinha de duas peças de roupa - usaria a roupa própria das noviças. Mas a vida tem suas surpresas. O convento era tão silencioso que eu ouvia meu próprio coração bater com medo. Desisti no dia seguinte. Implorei que me deixassem ir embora.

O tempo passou, eu em plena adolescência. Nessa época lia muito. Era a forma que encontrei pra sair do mundo, da pobreza, da dor, do sofrimento das bebedeiras do pai, das brigas em casa.

Nessa época também me descobri amando minha irmã. Mas, meu irmão e eu continuávamos muito, muito unidos em tudo.

Até que um dia a vida nos deu o bote fatal.

Com 23 anos ele perdeu a vida nas profundezas do mar. Caiu das pedras de um costão e desapareceu nas águas por 7 dias. A dor e o sofrimento rasgam o coração até hoje. Também pela ironia do destino: ele morreu afogado. A saudade nunca apazigua. A dor é fenomenal.

O tempo passou, meus pais também já partiram e hoje eu posso entende-los. Eles não amavam um filho mais do que o outro. E tentavam fazer o melhor com o que tinham, com o que podiam nos oferecer em meio as condições determinantes à penúria e às mazelas que dela são oriundas. Tentavam o impossível com uma pequena bala de hortelã – distribuí-la igualitariamente entre os três filhos. Infelizmente, pelo formato da bala, isso era impossível.

Hoje conseguimos entender e até conversar sobre isso, minha irmã e eu. Somos muito, muito unidas. Ela é meu tesouro, minha irmã amada e querida. Com ela, com meus pais, com a dor das experiências vividas, com a dor da perda aprendi a dar amor ao invés de só querer receber.

E aprendi a valorizar pequenos gestos como o repartir de uma bala, o sentido da família, do amor e da entrega a este amor. Penso que por isso meu coração intensifica emoções, ama incondicionalmente e é feliz por poder amar assim, por poder compartilhar amor...

Esta história de minha vida está no passado. No entanto, em determinadas situações (quando estou triste, em solidão ou em datas que lembram perdas de pessoas queridas) ela vem à tona.

Então... ainda sinto o cheiro das balas de hortelã. E ainda me enche os olhos d`água lembrar que em determinada época de minha vida eu não era generosa. Era obrigada à generosidade...
Maria
Enviado por Maria em 08/02/2015
Alterado em 08/02/2015
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