Maria
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Diário de Uma Prisioneira ! (II)
Permaneceu imóvel, encolhida no catre solitário, deixando a dúvida tornar-se certeza dentro de si e a invisível descoberta da manhã de outono caminhar, correr em seu sangue, inundando-a...

Um suspiro pela surpresa de início, depois uma estranha paz, e por fim a alegria, a felicidade.

Poderia ter sido o desgosto, a vergonha, o medo, um desalento maior, mas não. Foi a alegria, a felicidade interior. E isso ninguém lhe tira. Ninguém !

Ainda estava próxima, muito próxima do kebutz, do deserto em que sempre vivia e do albornoz de cativa fugitiva do mundo, para enxergar a libré de grande dama do amor e fada das palavras, mas sentia-se livre, solta, e voando de encontro ao céu, de encontro ao infinito, aos raios maravilhosos do sol.

E o tempo se fez, dia e noite. O tempo se fez horas, minutos e segundos... E o tempo passou...

Uma parte dela permanecia junto ao coração do sol, em meio aos dias e às noites de iluminuras cravejadas de ouro, em que a força do amor que os movia um para o outro, possuía um sabor de morte e eternidade, mas a outra parte encontrava-se ainda presa, sob as roupas espartilhadas, sob os mantôs e os atavios à pele àspera, à profunda cicatriz do dorso queimado e flagelado pelos açoites da vida...

Mesmo os pés calçados em elegantes sandálias de luz e de palavras, ainda não haviam perdido a camada rija e suja adquirida pelos longos anos de andar descalço, em imensas escaladas pelas trilhas pedregosas de seu viver.

Difícil raspar fora esse cascalho. Difícil para um sol, ardente de imediata transformação, esperar pacientemente a mesma acontecer no devido tempo, na devida época de tempo... Difícil, muito difícil !

E agora ela estava diante de uma descoberta imensurável. Uma grandiosa descoberta de si mesma. E aos poucos essa descoberta inundava-lhe a alma como uma criança moleca e fogosa de traquinagens, em balanços e gangorras da vida no novo mundo...

Ela pensou com entusiasmo, que doravante a marca da incrível odisséia para dentro de si mesma, permaneceria indelével através da certeza de quem era e o que sentia, que nascia naquela manhã por entre as folhas dos plátanos, já há longos dois milênios atrás.

Um sentimento forte, espadaúdo, sólido, tinha nascido ali em meio às árvores amareladas pelo tempo. Que importava se nascia de uma mulher de um só nome, uma mulher sem sobrenome ? Que importava se fosse bastardo ? Era esperado com ansiedade e só o que desejava era fazer o seu destinatário feliz. E assim, ela sentia-se rainha. Sentia-se digna, rica de descobertas e nobre de espírito. Mas, sabia: A nobreza do seu sentir nascera de sentimentos cativos, enlaçados à virtude e à coragem das cruzadas pelo seu espírito, que o sol lhe impôs enquanto ainda não adepta de sua luz, seu amor.

Via agora seu destino: o amor. Sua sina era amar e amar, somente amar. E muito amar.

E nascia assim, a compreensão da vida, como uma pequena semente, a primeira nascida da terra. Uma semente de luz e poesia, empunhada da clava do amor, da vida e do milagre.

Um pequeno Centauro, em sua sede de céu azul, em sua dor de luz, atirando flechas cada vez mais longe, cada vez mais alto, cada vez mais perto do que sentia.  Anelava o coração do sol. Um pequeno Centauro - destemperamentado e de gênio incontrolável -, mas que nasceu destruindo serpentes, construindo castelos aureolados de poesia e enfeitados pelos raios de amor do sol.

Tinha nascido a descoberta do sentimento. E, ¨é difícil descobrir sentimentos, mais fácil é jogá-los no esquecimento¨, dizia baixinho uma voz em seus ouvidos...

E, permaneceu quieta agora. Bem quietinha dentro de si. Nenhum som se ouvia além do bater descompassado e enlouquecido de seu coração. Olhava o sentimento que se alicerçava dentro de si, criando asas, tecendo redes de fios de sonhos e fazendo ninho eterno em seu coração.

Ela via esse sentimento crescer e com o tempo, deixar de ser menino, virar homem feito, forma feita, braços feitos, e se maravilhava com a sua vida. Para ele, por ele, recobraria forças e lutaria para conseguir a plenitude da liberdade.

E ficou assim, assim abraçada, em si mesma, deitada no colo de seu sonho, por longo tempo, abandonando-se ao sabor do devaneio um pouco desatinado - como sua própria imagem, sempre cercada pela água azul, pela rosa dourada -, esquecida das portas fechadas, janelas quebradas e dos muros cegos das cidadelas das palavras.

Naquele tempo, não percebia, mas hoje sabia, que sua liberdade só seria conquistada na catarse de seu passado, do seu tempo de transmutação. Como o foi.

E uma lágrima agora lhe desce cálida, amarga de sal e silenciosa, por não ter sido compreendida nesta etapa de sua caminhada. Por ter perdido o equilíbrio emocional e agora carregar prá sempre em seus costados a Flor de Liz dos loucos e desatinados, sendo que nada, ou tudo do que fez - mais de 300 anos de trabalho escravo em árdua busca da liberdade - não foi considerado, mas, desfeito no ar...

E ouviu as palavras mais duras. E sentiu a dor mais atroz. E sofreu o afastamento mais feroz.

Mas, ela ainda fala, ainda ama. Ela ainda diz. Ela ainda sente. Ela ainda é gente, ela ainda é mulher.

Mulher que fala hoje - mesmo se em pausas entrecortadas por soluços e impedimentos da vida, mesmo se em sussurros diz -, fala em meia voz:

- Você me afastou em vão. Você não pensou em o meu sentir, assumindo-se - sem que lhe pedisse -, ser anjo de proteção, anjo de cuidados e tutor de minha vida.

Hoje, asas quietas e longínquas, permaneces sempre em mim - apesar de tudo, ainda a caminhar em meu espírito, a cobrir minha face, a abraçar minha alma -, meu companheiro, meu amor, meu mestre, meu irmão, meu amigo!
Maria
Enviado por Maria em 10/07/2008
Alterado em 10/07/2008
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