Diário de Uma Prisioneira ! (III)
Agora, via-se como uma criatura estranha a si mesma, e como que imaterial. De cabelos cor de fogo, espalhados pela alvura do travesseiro e o semblante pálido, de olhar triste e penetrante e ao mesmo tempo curiosamente trigueiro, como os que agora contemplas por entre as pétalas da rosa dourada. O crestado da face alva, as placas marrons sardentas, surgiam na tez cerosa, enquanto as pálpebras azulavam e um círculo malva e lavanda, cobria a comissura dos lábios. Via em si mesma os estigmas da morte.
- Não faça isso minha pequena – sussurrava, inclinado sobre ela semi-inconsciente, um anjo azul -, não faça isso !
Mas sua alma mirava as asas do anjo, fracas, cortadas, podadas, caladas e quase apagadas, com soberana indiferença, e, com o mesmo descaso, as sombras que se agitavam ao seu redor. Queria ser igual. Ah! Como queria ser igual. Queria ser assim, um anjo calado, um pássaro de asas apagadas e abatidas, uma ave em apatia de vôo.
- Não vá minha menina, não vá. Vamos dar as mãos, andar de mãos dadas e mostrar ao mundo o valor e a beleza do amor !
E algo crescia dentro dela. Um vento de tempestade se encrespava em ondas gigantescas e a embalava nos braços do desespero. Prá lá, prá cá! Prá cá, prá lá! E o turbilhão ressoa com força. O estrondo se faz sentir em relâmpagos e raios aterradores...
E, dentro dela... a guerra. E fez-se a guerra dos mortos e feridos na dança da maestrina.
Do lado de cá, aproximava-se uma carruagem de portinholas gradeadas e panos negros e fechados, acompanhados de uma sólida escolta de 10 mosqueteiros da morte. Do lado de lá, vindo da montanha azul, o exército do sol, um esquadrão de anjos de luz, sentinelas do tempo, guardiões da eternidade, guerreiros valentes e inflamados de amor e paixão, armados de flecha e arco.
Com o sopro da brisa do sol, cálida e doce, erguiam-na sobre lençóis limpos, lençóis de paz e aqueciam-lhe a alma, friccionando seu espírito com o bálsamo da ternura e do amor.
Enquanto os soldados do sol guerreavam com os mosqueteiros da morte, o anjo azul fazia-lhe beber no cálice de vinho quente e temperado de ternura e amor.
- Beba minha pequena, beba. Mesmo exaurido, cansado, sem forças, te trago a taça das palavras, com gosto. Beba-as. Beba essas palavras, que mesmo saídas de mim, são tuas ! Beba-as !
E ela sentia o cheiro ocre do vinho, o odor de canela, do gengibre... o sabor atual do chocolate quente... o cheiro de poesia e sonhos no ar...
- Ah! O odor das especiarias... o odor das viagens felizes ! Não fora algo parecido que pronunciara Saravy antes de morrer ?
Ah! O aroma das viagens para dentro do mundo das palavras, para dentro de si mesma, para dentro das profundezas do seu abismo interior...
- Abra os olhos para a vida minha pequena. Abra o guarda-chuva celeste. Abrace o sol bem apertado, que sempre esteve ao teu lado. Dê o seu mais belo sorriso. Esquece as mágoas lá no fundo. Em breve chega a primavera. O frio do inverno já vai embora !
E ela fragilizada, doente, perdida, abria os olhos e só conseguia ver a noite, a escuridão.
- O que você vê não é a noite minha menina. É a neblina do rio que corre forte no fundo do vale. É a névoa quente da manhã que abraça a montanha. É só a neblina do rio e a névoa da manhã. Logo ela se esvanece nos raios quentes do sol.
E, o mutismo dela, o medo estampado, a face em dor, mesclado a imensa vontade de mudar, ao desejo de ser a fada que lhe soprasse o milagre da vida na alma, a férrea ânsia de ser mulher, crescer e ser mulher simplesmente, o tocavam profundamente...
- Como segurar a lágrima ? Como segurar a lágrima que teima em cair do canto dos olhos ? Muito obrigado por seres alguém tão especial em minha vida !
E dentro dela a vida começava a ganhar matizes, a vontade de continuar começava a brotar em meio às suas e as lágrimas que desciam dos olhos sol... o anjo azul, o rei de todos os astros do céu do universo de luzes.
E aos poucos, um sentimento forte, avassalador, despojado do medo, lhe atravessava o âmago do ser. Era como se um rio de águas caudalosas, de torrentes selvagens que ainda não sabiam para onde ir, mas sentiam o gosto de por algo lutar, crescessem nas profundezas do seu interior. Um desejo arrebatado de sobreviver para continuar a caminhar a estrada que lhe estava outorgada como sina realizar.
Acordava para a vida mais uma vez. Quantas vezes já tinha morrido dentro de si e outras tantas renascido ?
Agora, estava lúcida para compreender que o perigo que lhe ameaçava a liberdade era grande como o medo que outrora lhe aprisionara por séculos e mais séculos numa infância de vida seca, árida e sem amor.
Agora, retornava da morte para a vida, rodeada de guerreiros afoitos e armados, anjos azuis, com 7 talentos enrolados em fios de ouro sobre a bandeja de prata, cada um com um nome, formando 5, que a conduziam não se sabe para qual punição definitiva e libertadora, para qual pedra filosofal, para qual cárcere...
Que fosse - sonhava viva -, para sempre... o cárcere do amor !
Maria
Enviado por Maria em 11/07/2008
Alterado em 11/07/2008