Diário de Uma Prisioneira ! (V)
Diante dela, 7 conselheiros do rei, senhor das roças. Ela, frágil, abatida pelo silêncio, com os olhos semicerrados, ouvia a voz de um dos conselheiros que lia a missiva enviada a sua pessoa pelo rei, senhor das roças:
“Senhora,
Grande foi nossa dor quando, séculos atrás, respondeu com desobediência e ingratidão aos favores com que nos havia aprazido em cumulá-la, à senhora e a todo o seu reinado. Dedicamos-lhe "7 trabalhos" a saber, os 7 possíveis de serem realizados. Em sua homenagem construímos os "sonhos zebendos", os quais a senhora descobriu antes mesmo de lhe levarmos até eles. E quantas e quantas serenatas não foram cantadas em sua janela, as quais a senhora ousou ignorar como se nunca as tivesse ouvido ou que não fossem para si?
Diante disso, optamos por bem, condená-la a passar o resto da vida escrevendo suas estrepolias e vivências. E o que a senhora fez? Recebeu ordens de nunca parar de escrever e no entanto ignorou-as. Ordenamos-lhe que não respondesse a missivas de outrem que não o rei, que não dirigisse a palavra a quem quer que seja que não fosse o soberano senhor das terras e como a senhora se comportou? Avessa e contrária a tudo o que lhe ordenamos como lei. Foi assim que a senhora se apresentou por todo esse longo tempo.
Por isso lhe aplicamos a disciplina de nunca mais sair do mundo do sol. Sabedores de sua natureza impulsiva, seu gênio incontrolável, seu intempestivo temperamento, não seriam essas ordens ditadas pelo desejo de preservá-la de si mesma e dos atos inconsiderados que poderia sentir-se tentada a cometer? E a senhora os cometeu todos. Lançou-se diante dos perigos e desilusões que desejávamos evitar-lhe, e por eles foi severamente punida.
O caos se fez em sua vida, e no meio dele lembrou-se de quem os conselhos e ajuda, desprezou. O apelo desesperado de salvação chegou até nós pela voz das canções que dedilhavas no eco do tempo. Elas delatavam seu estado lastimável e advertiam-nos da triste situação na qual seus erros a haviam lançado.
Cativa de seu próprio medo, do bárbaro e insolente medo, da mente desequilibrada e senil, a senhora começava a tomar medida de seus desvarios e, com a inconsciência habitual das pessoas de seu sexo, voltou-se para o soberano que injuriou, pedindo-lhe socorro.
Em consideração ao grande dom que carregas, ao talento que lhe é fortuna, e à amizade que nos une ao mundo poético, e, por piedade à senhora, enfim, que continua a ser um de nossos súditos bem-amados, não quisemos deixá-la carregar todo o peso do castigo, abandonando-lhe aos cruéis delírios de sua própria loucura, e respondemos ao seu apelo.
Mandamo-la buscar em meio ao terror da sua vida que vagava perdida no espaço do universo de luzes. A senhora está hoje salva no solo do rei senhor das roças. Rejubilamo-nos com isso. É justo no entanto, que nos peça perdão. Poderíamos ter-lhe imposto, na solidão de um claustro, algum tempo de necessária reflexão. Mas, a lembrança de seu sofrimento passado nos demoveu desta idéia.
Sabedores de sua paixão pelo solo das terras do rei, senhor das roças, e de que o sol do mar pode ser o melhor dos conselheiros, preferimos enviá-la para longe de suas terras, para as terras da ilha da magia e das águas calmas. A senhora não estará no exílio. Nelas permanecerá até o dia em que, por decisão própria, tomará o caminho das terras do rei, senhor das roças, para protestar submissão completa à sua soberania.
Na espera desse dia – que desejamos próximo -, colocamos ao redor da ilha um guardião que lhe tomará conta, encarregado de mantê-la sob vigilância...
E ainda temos a relatar que a sua submissão deve se dar com as regras impostas pelo rei, a saber, 7 regras de submissão, que exporemos a seguir:
1 - Tendo a senhora nos ofendido publicamente em suas mais de 3000 mil cartas, a reparação deve ser pública.
2 – A senhora virá até nós em vestimentas humildes, negras, para estampar arrependimento.
3 - Se postará do lado de fora da grande "porta de madeira" do palácio e nela chorará "lágrimas aperoladas", sabendo que não poderá nunca mais – sem pedir perdão - acessar o pátio principal do palácio do rei, senhor das roças.
4 – Na presença de todos os deuses, as estrelas do céu, os pensadores, escritores, poetas, deverá postar-se diante do rei, ajoelhar-se, beijar-lhe a mão e renovar seu juramento de devoção e vassalagem.
5 – Será pedido à senhora, que dedique à coroa todos seu arsenal de escritos raros, e doe seus 4 reinos, a saber: "Recanto dos Cantos, A Escrita Natural, A Usina de Sementes, O Berço Noturno" e mais todo o "Cantinho para Reflexão" onde a senhora planta suas sementes.
6 – Será solicitado a doação inclusive do jardim do que "Os Seus Olhos Viram e o Álbum de recordação". Os pergaminhos e contratos de cessão e doação deverão ser entregues a nosso mensageiro-mor por ocasião da cerimônia de submissão, em sinal de homenagem e pedido de perdão.
7 - A partir de então a senhora deverá se aplicar a servir seu príncipe, rei e senhor, com uma fidelidade que desejamos plena, sem sombra de dúvidas. Após a cerimônia de submissão a senhora permanecerá nas terras do rei, senhor das roças, aceitará os títulos de nobreza e honras que sempre desejamos e nunca conseguimos conceder-lhe, mas que agora, com o espírito serenado pelo castigo a senhora aceitará quando houvermos por bem conceder-lhe e servirá ao rei com dedicação, seja em seu reino, em sua corte ou fora dela.”
Nesse momento, o mensageiro que lia a missiva do rei, interrompeu a leitura para ouvir a voz daquela que tanto machucara o coração do rei. Impressionados os 7 conselheiros ouviram uma voz “doce, falida e meiga”, como o tinha dito o rei sobre ela:
- Não pode parar senhor? Estou cansada. Estou morrendo, não vês? Poderia parar e me deixar morrer em paz?
- Pois aconselho-a a não continuar morrendo por tempo demasiado longo senhora, pois acredito que a indulgência do rei para com sua pessoa não seja eterna. E é de fato com essa recomendação que o soberano senhor conclui sua missiva. Saiba que sua majestade o rei, em sua bondade, concede-lhe vários meses de reflexão, antes de considerá-la para sempre uma rebelde irredutível. Mas, passado o prazo ele será inflexível, a senhora o sabe. Estamos em junho senhora. O rei sabe-lhe doente e abatida. Está decidido a ter paciência, mas se nos primeiros dias do milênio vindouro a senhora não tiver realizado o que lhe foi imposto para que obtenha o perdão, ele considerará sua abstenção como rebeldia.
- Que acontecerá então? Perguntou baixinho.
- A senhora será detida e conduzida a uma fortaleza onde ficará para sempre aprisionada e será torturada outra vez com seus próprios delírios...
Por muito tempo ninguém falou. O silêncio tornou-se gritante. Seu som poderia ser ouvido nos confins dos palácios do rei, senhor das roças.
O mensageiro foi o primeiro a romper o silêncio com sua voz grave e calma.
- A senhora não ignora que o rei, senhor das roças, está profundamente abalado com vossa ingratidão e desobediência. O rei já não é mais o mesmo. Sua alegria em cantar pelas manhãs já não existe. O rei não sai mais para olhar a beleza da vida na janela do tempo e inclusive, irado, ordenou que arrancassem todas as flores do jardim dos encantados e que jogassem pedregulhos sobre os canteiros, de tal maneira que nunca mais alguém pudesse sequer suspeitar que ali um dia foi plantada uma rosa dourada, uma "Flor de Mulher", uma "Rosa de Amor". Hoje o rei vive escondido, ninguém mais sabe dele, ninguém mais consegue chegar à sua presença. E a senhora há de convir ser a grande causadora desse mal que assola a vida do rei, senhor das roças. Os próprios súditos do rei já falam em colocar vossa cabeça à prêmio devido a sua insolência e sua rebeldia e ao fato de ser "Mulher de Danos", causadora de catástrofes e atentados contra o rei, seu reinado e até contra sua própria pessoa.
Dentro dela brigavam sentimentos. O amor escondido que sentia pelo rei inundava-lhe a alma e lhe empurrava para o ato de submissão. Mas, ao mesmo tempo, seu orgulho gritava que esse ato, essa prova tão sofrida, lhe abateria a soberba para sempre. Então perderia sua força indomável e torna-se-ia igual aos outros, poderia tornar-se um dócil instrumento em mãos feitas para guiar os corações e seus destinos. Mas não era isso que desejava? Não era uma mão prá lhe cuidar, guiar seus passos, orientar os caminhos da vida que ela até hoje, em sua rebeldia, nunca soube achar?
Os 7 rostos encaravam ansiosos as transformações que ocorriam na face pálida, os olhos grandes, um pouco tristes e penetrantes.
- Senhora, dê-nos prova de seu empenho e saberemos despertar a clemência do rei, senhor das roças para com vossa pessoa. Poderemos sugerir que atenue o rigor da penitência que quer infringir-lhe. Talvez consigamos evitar as vestes modestas, as palavras de vassalagem...
Diante dessas palavras ela recuou um passo para trás, altiva:
- Terminaram senhores?
- Não senhora, respondeu o sétimo conselheiro impressionado com a teimosia que via estampada na face branca como o papel. Trago ainda uma mensagem do rei em separado para vossa pessoa. Ei-la aqui.
Ela tomou trimilica, o enorme envelope em suas mãos. Após romper o selo da teia de aranha, ela reconheceu a escrita do rei:
“Coisa pouca, bagatela para ti, minha insuportável menina querida, minha inesquecível...”
As letras dançaram-lhe diante dos olhos, ela tombou a mão trêmula sem conseguir ler o resto da missiva escrita de próprio punho pelo rei, senhor das roças e do seu coração. As pernas fraquejaram. A voz travou-lhe na garganta. Não fez mais nenhum gesto. Apenas seu olhar cravou-se profundo nos 7 cavalheiros que atônitos, não conseguiam compreender o que a abalara tanto o ser, a ponto de sua voz faltar e sua altivez desaparecer por completo da face perturbada.
Diante do silêncio que não calava, os enviados do rei, resignados, ergueram-se e já se retiravam quando ouviram uma voz:
- Senhores, digam ao rei que ele não tem o direito de ser bom para comigo.
- O que isso quer dizer senhora? Julga-se indigna da bondade de Sua Majestade?
- Não. Apenas quero dizer que a bondade não cabe entre nós, disse ela num fio de voz.
- Não compreendemos senhora. O que estás a nos dizer? O que cabe então entre uma rebelde indomável e o seu rei?
Ela tremia, sentia-se navegando em mares nunca antes vistos, pisando em nuvens que dançavam no céu sem direção. O coração bradava descompassado... A voz engasgava na garganta, mas armou-se de um último ato de coragem para falar com os olhos chameados, chispando sentimentos, brilhantes de emoção:
- Digam ao rei, que entre nós só cabe... o amor !
Maria
Enviado por Maria em 11/07/2008