Diário de Uma Prisioneira (VII)
Ela corria sob as árvores. Tirara os calçados e o musgo fazia-lhe bem aos pés descalços.
Às vezes, parava para ouvir os sons da natureza. Mas, num lampejo de vontade, olhava o caminho adiante e precipitava-se novamente a correr.
Ah! A embriaguês da liberdade ! Ela ria baixinho, consigo mesma, aspirando o perfume no ar.
Sentia-se uma criança outra vez. Traquinas e feliz. Os cabelos soltos ao vento, refletindo a luz do sol, dançavam ao sabor da música do vento.
Enfim chegava aonde queria: o sopé da montanha azul.
Sentou sobre o chão coberto de musgos e florezinhas para descansar por uns minutos.
A corrida desenfreada a deixara ofegante, a face afogueada, mas os olhos chispando alegria e paixão pelo que, sonhavam, encontrariam no fim do caminho.
As batidas do seu coração atenuavam-se e radiante, ergueu-se e pôs-se a escalar os rochedos musgosos a sua frente.
Queria chegar ao alto do monte. Sabia que de lá a visão seria esplêndida, fantástica...
Quanto mais perto do cume chegava, mas crescia sua ânsia. Ao se aproximar do alvo, aprumou o corpo, sacudiu os raminhos presos à roupa, alisou os cabelos que o vento desatara e espalhou-os pelos ombros, sorrindo por sentir a importância de cada gesto em sua vida.
Avançou, agora já tímida, tomada de apreensão. Os cabelos cairam-lhe nos olhos. Afastou-os com impaciência. Mas, logo o múrmurio do rio lhe trouxe paz e serenidade.
Diante de si, ainda um pedaço de rocha a escalar. Faltava tão pouco para chegar lá. Apenas alguns passos e o paraíso se faria em sua vida.
Um caminho estreito, coberto de heras que formavam uma cortina espessa a impediam de chegar onde sonhava... mais uma porta cerrada em seu caminho não a impediria de avançar...
Estendeu a mão e devagar ergueu a cortinha de folhas. Embascada seus olhos, profundos e penetrantes, contemplavam a luz a sua frente: a face do sol, iluminada de calor, sorria, aquentando-lhe a alma e o coração, fazendo-lhe arder o sangue nas veias...
Olhou o mundo encantado ao seu redor. Diamantes cintilavam nas mil folhas. Pirilampos jorravam da plumagem dos castanheiros e os carvalhos e plátanos pareciam bordados de prata.
Ela tremia de emoção. Medo e timidez lhe venciam o ardor do sangue. Medo de chegar perto, tocar o sol e ele se apagar como todas as vezes em que sua mão o sentira próximo. Medo de o sol se apagar outra vez e ela deslizar na sombra sem nome que a ramagem da floresta abre aos sonhos que se desfazem.
Quem era ela para ousar tocar com a sua a alma do sol? Era apenas uma menina, surgida na terceira hora, na proximidade do crepúsculo com uma única palavra dita em duas:
- É verdade !
E ela ousara falar. Ela, uma menina tímida, vinda do nada, os cabelos de ouro à sombra de um capuz de pastora, um manto de monja, pés descalços e linguajar apurado, mas arisco e selvagem. E falara. Deixara falar a alma, o espírito, o coração.
- Teria ela consciência da vida, da paixão, não formulada, que se metamorfoseava em suas palavras? perguntava-se o sol meiado de amor, camuflado em raios que se acendiam e se apagavam ao som das palavras e canções.
Ela, olhos extremamente fundos sob as sombrancelhas espessas, fixava o inacreditável dos seus sonhos com intensidade.
Mas o tempo é inimigo das horas e dos sentimentos. Com o deslizar da "alça de ponteiros" que iam e vinham sem encontrar a fórmula secreta de juntar duas esperanças, dois sonhos, seus olhos foram se apagando... Dir-se-iam dois pontos dourados, cuja luz penetrante, atenuava-se misturada ao falar desenfreado, acabando por fatigar a ponto de fazer silenciar o sol... um silêncio que doia... que feria e morria...
E tudo ruiu como o dia. O crepúsculo cresceu, as cores queimavam no fogo avermelhado dos desencontros... o sol ia se indo... os sonhos se apagando... as lágrimas descendo.
E como uma contradição, quando a luz ia se apagando, ela, diante do caos, das descobertas que fazia de si mesma, do silêncio que a forçava falar as emoções, descobria agora, tarde, que uma força lúcida habitava seu corpo, uma paixão habitava sua alma.
E desmoronou para a morte tantas vezes que o caminho já lhe era sem dor, anestesiado em seus sentidos.
Mas cada vez que sua alma morria, reencontrava a inebriante impressão de ser invencível que amiúde a invadia no momento de empreender uma tarefa difícil. Decerto a impressão fora por vezes ilusória, pensou, pois sob seus passos o solo lhe era agora instável, o silêncio se eternizava, a "Dor de Morte" fervia. Mas essa mesma dor a fazia lutar para viver.
A tempestade interior se precipitava como em junho se amontoavam, milênio após milênio, as nuvens cinzentas de frio no céu brilhante da "montanha azul". A efervecência interna nascia como da primeira vez, na "Dor Que Toma Minha Alma"...
E o tempo ia passando... O sol já havia se escondido dentro de si. A lua saia de trás das árvores num halo crisado, revelando os esconderijos das aves e o surdo galopar de um coração apaixonado.
Os cães, indiferentes, latiam ao longe...
Não, não se deixaria morrer. Não se deixaria morrer, porque uma mulher jamais se reconhece vencida. Nem com as luvas mais resistentes e macias ou com a indiferença - quanto mais com o medo - se consegue manejar essa arma cortante que é a força de uma mulher que acredita no que sente, no que diz, no que faz, no que é...
Não, não deixaria essa chama que em seu interior nascia... se apagar...
Maria
Enviado por Maria em 12/07/2008