60 Minutos
Pai. Hoje eu perdi você. No tempo de tantos anos, hoje eu perdi você. Partiste para longe de mim.
E faz apenas um minuto que eu disse:
- Eu te amo!
E você com teu silêncio, agora sem dor, respondeu que era grande o seu amor. Tão grande que você esperou por mim. Um dia inteiro e metade de uma noite. E você esperou por mim. Quieto, calado.
Preso em suas mãos, o corpo com um manto de paz a cobrir-te em tuas últimas horas de vida. Mas você esperou por mim, sentindo os queridos teus passando um à um para falar a ti as últimas palavras, a despedida.
Eu eu vim meu pai. Depois de rodar por horas na trilha escura que nunca se findava, eu vim.
E te vi ali. Parecia-me tão frágil.
Passei a mão em teus braços fortes que tantas vezes apertaram-me com força junto ao peito.
Senti teu coração batendo. Um pouco mais rápido do que sempre batia.
Senti o calor da tua pele e com o tempo pai, senti-a esfriando aos poucos, fazendo-me entender que estavas partindo.
Deixaram-me ficar ali. Ficar perto, bem pertinho de ti. Para que eu te pedisse mais uma vez perdão meu paizinho querido, pelas coisas que te disse há tantos anos atrás. Pelas coisas que te fiz em meio à loucura do medo da insanidade, que só uma droga pode trazer à vida de uma pessoa.
E, hoje eu sei paizinho. Era ela que te transformava. Era ela que te fazia ficar diferente do pai amoroso, alegre, cheio de vida que eras. Era ela que te fazia agredir, maltratar, desejar matar e morrer ao mesmo tempo.
E eu te pedi perdão mais uma vez meu pai, e do fundo do meu coração falei do meu imenso amor, do perdão que há muito, muito tempo, Deus tinha colocado em minha alma. Lembrei o dia em que esse perdão se concretizou em atos, num abraço...
Era um dia de muita dor. Chorávamos a perda do filho amado, do irmão adorado, do amigo querido. E tu, naquele dia, rejeitou o meu abraço, empurrando-me para longe de ti e pedindo minha irmã em meu lugar.
Mas meu coração, onde sempre morava o ódio, onde a primeira reação seria agredir você em atos e palavras, abriu-se em amor e compreensão.
Ferias porque tinhas sido ferido. Pela vida. Pela morte. E entendi que ferias a quem amava.
Sabe por que meu pai? Porque sempre, quando ferimos, ferimos a quem amamos.
E no tempo de espera, na cura da dor, nas madrugadas, nos reuniamos na cozinha e conversávamos. E numa dessas noites, veio o perdão e a decisão de uma nova vida. E tudo mudou. Tudo. A mãe podia, em dor, sorrir outra vez.
Você tinha voltado a ser o homem somente. Sem ter a face embotada pelo veneno que agora, mesmo tanto tempo sem o usar, estava te levando para a eternidade.
E agora te via ali. Tão frágil.
E me contaram que tinhas sido tão forte ao enfrentar a terrível dor que te fazia gritar. O coração sofria e sofre ainda ao imaginar.
E depois, após receber em tuas veias a mais potente das drogas, sem dor, já sorrias, alegre, brincalhão como sempre eras.
E lembrei as últimas palavras que disseste para mim através da enfermeira no telefone:
- Diga a ela que estou bem. E que ela é uma filha muito chorona.
Só tu para me dizer isso meu pai. Eu sabia que foste tu mesmo a falar. Eu sabia. E meu coração se tranquilizou imaginando que fosse apenas um momento e que logo tudo voltaria ao normal.
Tu sabias que eu chorava por tudo e por nada, como é até hoje. E lembrou de que cada vez que falava ao telefone contigo, nós dois chorávamos.
Porque lembrávamos o tempo que tinhamos perdido.
E porque agora, pai e filha, podiam se falar de verdade. Sem brigas. Sem raivas. Sem dor. Com muito, muito amor.
E me deixaram ficar ali. Com você. Em teus últimos momentos.
E cantei para ti as músicas que mais gostavas. As lágrimas corriam pela face, a voz embargava, mas cantei para ti, para alegrar tua alma.
E falei do futuro, fiz promessas. Contei para ti do broto dourado de amor que te amava com paixão e admiração. Prometi regá-lo nos caminhos do jardim da vida, do respeito, da misericórdia, do cuidado consigo mesmo e com o mundo ao redor.
Prometi ensinar-lhe do amor, da paz e da importância da família. Prometi ensinar-lhe e mostrar o caminho de Deus e da eternidade de luzes.
E o tempo passou. Conversei tanto contigo que achei tinham se passado anos e anos naquele momento. Mas foram apenas alguns minutos de horas. Sessenta minutos que tu me deste, meu pai, na hora da tua partida.
Perguntei por que estavas ficando sem calor...
Falaram-me que tinha chegado o momento. Irias partir. O choro não calava em minha alma. A dor rasgava a carne.
Não quis ficar ali. Não queria ver-te ir. Despedi-me. Beijei você. Dei-te um último abraço, um último toque de meu amor e carinho...
Agradeci por me fazer vir ao mundo. Por me fazer existir.
E fui em direção à porta. Ainda olhei uma vez para trás e de longe prometi:
- Até o nosso reeencontro na eternidade de luzes meu pai!
Seu coração acelerou. Bateu forte. Foi o que vi no último minuto naquela máquina tão fria. O disparar, o bater mais forte do teu coração.
Saí.
Pedi à minha irmã que fosse se despedir de ti. Ela voltou dizendo que o folêgo da vida estava saindo de ti.
Descemos as escadas. Meia-noite em ponto.
Ficamos no jardim, abraçadas, olhando a janela onde estavas... em paz... com a certeza de que Deus já te acolhia em suas mãos e que cuidaria de nós dando-nos o alento.
E você partiu... em paz...
Deixando em mim meu pai querido, uma lição de vida tão grande, mas tão grande, que nunca, jamais vou esquecer.
Por amor a ti é que amo os combalidos, os renegados, os perdidos.
Por amor a ti meu pai, que os amo de paixão e que jamais deixarei de deles cuidar com amor.
Por amor a ti é que passarei a minha vida ensinando a eles - que acham que são patinhos feios - que são cisnes e a viver como tal. Que são belas adormecidas que precisam acordar com o beijo da vida.
Por amor a ti, meu pai amado, é que passarei minha vida gritando ao mundo que é possível aprender a aprender a viver... como tu aprendeste. Como tu me ensinaste.
Sim. Sim. É possível sim, aprender a aprender a viver!
Maria
Enviado por Maria em 05/09/2013
Alterado em 05/09/2013