Maria
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A Lucidez da Loucura
     O nome dele eu nunca soube. Todo mundo o chamava de Sinsim. E até hoje lembro dele assim: Baixo, magro, meio encurvado, de cor negra, caminhava pelas ruas envergando calça social, sapato de couro, camisas de mangas compridas e um chapéu também de couro, já surrado e desgastado pelo tempo.
     Quando falava de si, dizia ter sido escravo (eu sempre acreditei), mas pelo número de anos que tinha, uns 60 a 70, lá pelos idos de 1970, talvez o pai ou o avô pudessem ter sido...
     Seu Sinsim, como o chamavam por causa da idade, vinha em nossa casa uma ou duas vezes por semana. No domingo a noite era fatal. Cada vez que aparecia ficava horas conversando com meu pai.
    Meu pai não dava bola, mas a vizinhança vivia cobrando que ele não falava coisa com coisa, parecia louco, desnorteado, fraco das idéias. E o pior:
     - Além de louco é bêbado, diziam.
     Eu não achava isso quando o ouvia conversando com meu pai. Sempre escutava as conversas. Ele era calmo e falava das coisas da vida, dos problemas, de política... Essas coisas. Como qualquer um.  Enquanto falava, descascava o fumo para fazer um cigarro de palha.
E depois ia embora, monologando sobre a conversa que tinha tido. Eu achava isso “normal”, porque também falava sozinha pelos cantos. Então, prá mim, com acho que uns 8 ou 9 anos na época, isso não era novidade.
     Quando o Sinsim vinha aos domingos trazia sempre à mão uma sacola plástica com vários pacotinhos contendo pedaços de lingüiças ou de tipos variados de carne assada. Quando chegava lá em casa já ia perguntando ao pai:
     - E então Gringo, quantos vai levar hoje ?
     Meu pai falava o número e ele tirava da sacola os saquinhos e nos entregava (eu e meus irmãos), pois sempre estávamos ali por perto espiando.
     Meu pai perguntava quanto custava e ele de imediato dizia:
     - Um milão paga tudo! "Milão" era o apelido que tinhamos dado para o 1 cruzeiro da época. Meu pai puchava do bolso um "milão" e entregava ao Sinsim, que ligeiro o guardava no bolso das calças. E isso era cada domingo. E não importava o número de pacotes que o pai “levava”. O preço era sempre o mesmo.
     A gente carregava os pacotinhos para a cozinha, a mãe abria, picava em pedaços bem pequeninos e reservava. E, assim que o Sinsim ia-se embora nós comíamos o conteúdo de um dos pacotinhos que ele tinha trazido. Os outros (em geral 2 ou 3) a mãe guardava para o dia seguinte. E eu sempre ouvia o pai dizendo:
     - O Seu Sinsim disse que os nossos pacotes são sempre diferentes. E que coloca aquelas carnes especiais, porque somos amigos dele.
     O Sinsim, não tinha muitos amigos. Em geral as pessoas tinham medo dele. Eu era uma que, fora os domingos a noite, porque o pai estava junto, morria de medo do Sinsim. Mas aos domingos ele era diferente do resto da semana.
     - Parecia normal, o povo dizia.
     Aos domingos ele trabalhava de assador numa churrascaria que na época ficava à beira da BR 277, na cidade de Matelândia, no Paraná. E hoje eu sei por minha mãe, que os pacotes que trazia prá gente, eram na verdade sobras da churrascaria, onde ele trabalhava aos domingos.
Ele ganhava essas sobras como pagamento pelo trabalho de assador, as separava em pequenas porções e vendia aos vizinhos da vila.
     Os “gringos”, como nossa família era conhecida por ser de italianos, eram os seus fregueses prediletos e por isso era na casa dos "gringos" que ele se demorava mais a conversar... E meu pai nunca lhe negava um dedo de prosa, por isso ele nos privilegiava com os pedaços mais bonitos da sobra de carne.
     O que era uma pena muito grande é que a partir de segunda-feira, o Sinsim usava os cruzeiros que ganhava com a venda da sobra de carne, para beber. E no restante da semana a gente só o via embriagado pelas ruas da vila.
     E aí é que morava o perigo. O homem se transformava. Ficava violento, brigava e gritava palavrões pelas ruas. Não podia ver uma criança que as fazia correr dizendo que ia “pegar” cada uma delas.
     Naquela época a gente tinha mania de brincar na rua. De noite e de dia. Não tinha televisão, não tinha o que fazer e então brincávamos na rua. De “bate”, de caçar mariposas, de jogar bolita, de luta livre, de esconde-esconde, de “bicho” (pegar).
     Quando o Sinsim surgia na esquina de nossa rua a criançada debandava a se esconder. Ele vinha falando sozinho, xingando e brigando com inimigos invisíveis.
     Algumas crianças o provocavam, jogavam pedras... Ele corria atrás gritando como um louco.
     Mas... por fim, cansado, seguia seu caminho para casa, para sua família (Sinsim tinha esposa e vários filhos), conversando com as estrelas, consigo mesmo, com o mundo, xingando e falando palavrões que estávamos proibidos de dizer.
     Eu não entendia na época, mas às vezes escutava meu pai falar prá mãe, chateado com as crianças que provocavam o Sinsim ou com os adultos que só o criticavam:
     - Que deixem o homem em paz. Pelo menos tem alguém que pode ficar dizendo os palavrões que a gente tem vontade e não pode falar. E daí se ele conversa sozinho ? Pelo menos ele conversa, não é como nós que cai uma folha e já ficamos emburrados num canto da vida!
     Hoje, não sei porque, lembrei e fiquei pensando no Sinsim.
     Era um corpo todo se manifestando através da loucura que lhe delegaram, que lhe aprisionaram. O que será que ele tanto conversava consigo mesmo ? Por que soltava tantos palavrões para a vida ? A que dragões interiores conjurava quando brigava com as crianças e xingava pelas ruas ?
     O que ele diria da nossa "normalidade" enlouquecedora ? Não sei. Mas receio que na lucidez da sua loucura, ele diria que os loucos somos nós !

     “Só um louco sabe o que é um instante de lucidez”
Maria
Enviado por Maria em 11/12/2014
Alterado em 11/12/2014
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