O Diário da Prisioneira
O azul do céu era como uma água pura de que tinha sede. Desejava voar pelos telhados planos para saciar os olhos ardentes de vida. Mas, sentia-se engaiolada, com uma esmagadora impressão de sufocamento, os nervos esfacelados. Um impulso de pânico por não poder voar, por não poder falar o que lhe ia na alma. O desejo de céu... de Sol !
A terra, o céu, o Sol, o ar puro da vida !
Sentia-se enterrada viva naquele túmulo escuro, no calabouço que crescia em seu interior. Justo ela, que durante dois milênios, não vivera senão no círculo imenso e mágico das palavras. Agora, sem asas para voar, sofria a agonia dessa prisão.
E como pássaro enlouquecido na gaiola, chocava-se contra a implacável barreira que a impedia de falar. As mãos ou asas diáfanas, já com as marcas do sofrimento, não faziam mais ruídos, batiam, batiam... em silêncio. Seus olhos caminhavam de um lado a outro, ora passando na porta fechada das asas do sol, ora na trapeira gradeada de suas palavras.
Não se reconhecia em muitas delas. Parecia que tudo ali dentro, era um outro país, um país de estrangeiros taciturnos e almas cobertas de suspeita.
Que lhe acontecia? Que temores lhe acometiam outra vez a alma?
Esmaga-a uma espantosa fadiga, a qual pareceu jamais ter experimentado antes, sequer nos dias mais difíceis, no tempo de sua transmutação. O silêncio do sol por tanto e longo tempo, tornara-se em um suplício e cada dia perdia mais a coragem.
Perguntas rondavam seu espírito outra vez, conturbando-o. Teria se deixado abater a tal ponto de partir a tal mola de viver ? E a de reviver ?
Arrastou-se de um canto a outro do ser. De longe viu, do lado de lá de si mesma, o berço do amor – seu coração – onde morava o sol. Almejava chegar lá pois era o único lugar em que desejava repousar a alma dolorida. Era como entregar o corpo cansado sobre um pedaço de relva verde e macia como plumas, sob os cedros de uma floresta, outonada de amor.
Voltou os olhos para a porta. Quantas portas fechadas ao longo de sua existência tão curta?, pensou. Portas cada vez mais pesadas, cada vez mais cerradas. Seria uma brincadeira que o destino se comprazia em puni-la pela criança de tranças soltas que ela era e que fora, quando galopava os pés nus pelas sendas da vida, pela floresta dos sonhos, e tão apaixonada pela liberdade que os deuses das letras acreditavam que era um pouco fada ?
“Você não passará”, diziam as portas. E cada vez que conseguia evadir-se, outra logo se erguia, mais implacável, mais porta, mais fechada em cadeados e trancas de ferro e aço. Após a porta da miséria, houvera a porta do medo, depois o gradeado do alcoolismo, em seguida a vida tão cheia de cestas de cisnes; conseqüente o medo de sair da escuridão, do sono milenar e agora o silêncio de palavras que lhe são fonte de vida e amor. Seria o silêncio mais forte ?
Pensou naqueles que, encarcerados também em cadeias físicas, do corpo, pagavam durante anos, atrás de portas de ferro, por indisciplina contra a vida dos outros.
Mas dessa prisão ela estava livre. Sua prisão era outra. Sua prisão era lá dentro, não fora de si. Uma solitária na prisão interior.
O sentimento de sua solidão e de sua fraqueza em continuar adiante abatera-a. Quando acordou de seus sonhos com a Dor de Morte atualizada silenciosamente, atracara num solo nu e árido, onde parecia que só cascalhos existiam para ferir os seus pés.
Parecia que somente dois critérios de vida existiam para sua caminhada: o medo do rei-sol e o amor que nunca se apaga no seu coração - da flor. Mas, a lei do mestre, sobrepunha-se ao que quer que fosse, trazendo como soma multiplicada, o silêncio. Sua realidade estampava-se a sua frente.
Vagava perdida em marés perigosas e devoradoras da areia sob seus pés. Não era senão um pobre marujo de águas tenebrosas e profundas, mas rasas das cartas, poesias, flores e festas do passado.
Nem tinha mais onde buscar lembranças. Elas se foram com o vento que leva as primeiras folhas do outono. O mensageiro de lembranças estava vazio. E nos jardins, o silêncio. Não tinha mais onde buscar forças para continuar a não ser nas vozes caladas e falantes do passado. Uma agonia cresceu dentro do peito. Desesperada clamou a meia voz:
- Sol, Sol, meu irmão !
E o silêncio foi tão grande que seu som foi ouvido no infinito de sua alma e doeu na carne do espírito. Um suor frio inundou-a e fê-la desfalecer.
Foi quando sentiu... um desejo luminoso, uma vontade imensa e ardente, de continuar a viver !
(II)
Permaneceu imóvel, encolhida no catre solitário, deixando a dúvida tornar-se certeza dentro de si e a invisível descoberta da manhã de outono caminhar, correr em seu sangue, inundando-a...
Um suspiro pela surpresa de início, depois uma estranha paz, e por fim a alegria, a felicidade.
Poderia ter sido o desgosto, a vergonha, o medo, um desalento maior, mas não. Foi a alegria, a felicidade interior. E isso ninguém lhe tira. Ninguém !
Ainda estava próxima, muito próxima do keburtz, do deserto em que sempre vivia e do albornoz de cativa fugitiva do mundo, para enxergar a libré de grande dama do amor e fada das palavras, mas sentia-se livre, solta, e voando de encontro ao céu, de encontro ao infinito, aos raios maravilhosos do sol.
E o tempo se fez, dia e noite. O tempo se fez horas, minutos e segundos... E o tempo passou...
Uma parte dela permanecia junto ao coração do sol, em meio aos dias e às noites de iluminuras cravejadas de ouro, em que a força do amor que os movia um para o outro, possuía um sabor de morte e eternidade, mas a outra parte encontrava-se ainda presa, sob as roupas espartilhadas, sob os mantôs e os atavios à pele àspera, à profunda cicatriz do dorso queimado e flagelado pelos açoites da vida...
Mesmo os pés calçados em elegantes sandálias de luz e de palavras, ainda não haviam perdido a camada rija e suja adquirida pelos longos anos de andar descalço, em imensas escaladas pelas trilhas pedregosas de seu viver.
Difícil raspar fora esse cascalho. Difícil para um sol, ardente de imediata transformação, esperar pacientemente a mesma acontecer no devido tempo, na devida época de tempo... Difícil, muito difícil !
E agora ela estava diante de uma descoberta imensurável. Uma grandiosa descoberta de si mesma. E aos poucos essa descoberta inundava-lhe a alma como uma criança moleca e fogosa de traquinagens, em balanços e gangorras da vida no novo mundo...
Ela pensou com entusiasmo, que doravante a marca da incrível odisséia para dentro de si mesma, permaneceria indelével através da certeza de quem era e o que sentia, que nascia naquela manhã por entre as folhas dos plátanos, já há longos dois milênios atrás.
Um sentimento forte, espadaúdo, sólido, tinha nascido ali em meio às árvores amareladas pelo tempo. Que importava se nascia de uma mulher de um só nome, uma mulher sem sobrenome ? Que importava se fosse bastardo ? Era esperado com ansiedade e só o que desejava era fazer o seu destinatário feliz. E assim, ela sentia-se rainha. Sentia-se digna, rica de descobertas e nobre de espírito. Mas, sabia: A nobreza do seu sentir nascera de sentimentos cativos, enlaçados à virtude e à coragem das cruzadas pelo seu espírito, que o sol lhe impôs enquanto ainda não adepta de sua luz, seu amor.
Via agora seu destino: o amor. Sua sina era amar e amar, somente amar. E muito amar.
E nascia assim, a compreensão da vida, como uma pequena semente, a primeira nascida da terra. Uma semente de luz e poesia, empunhada da clava do amor, da vida e do milagre.
Um pequeno Centauro, em sua sede de céu azul, em sua dor de luz, atirando flechas cada vez mais longe, cada vez mais alto, cada vez mais perto do que sentia. Anelava o coração do sol. Um pequeno Centauro - destemperamentado e de gênio incontrolável -, mas que nasceu destruindo serpentes, construindo castelos aureolados de poesia e enfeitados pelos raios de amor do sol.
Tinha nascido a descoberta do sentimento. E, “é difícil descobrir sentimentos, mais fácil é jogá-los no esquecimento”, dizia baixinho uma voz em seus ouvidos...
E, permaneceu quieta agora. Bem quietinha dentro de si. Nenhum som se ouvia além do bater descompassado e enlouquecido de seu coração. Olhava o sentimento que se alicerçava dentro de si, criando asas, tecendo redes de fios de sonhos e fazendo ninho eterno em seu coração.
Ela via esse sentimento crescer e com o tempo, deixar de ser menino, virar homem feito, forma feita, braços feitos, e se maravilhava com a sua vida. Para ele, por ele, recobraria forças e lutaria para conseguir a plenitude da liberdade.
E ficou assim, assim abraçada, em si mesma, deitada no colo de seu sonho, por longo tempo, abandonando-se ao sabor do devaneio um pouco desatinado - como sua própria imagem, sempre cercada pela água azul, pela rosa dourada -, esquecida das portas fechadas, janelas quebradas e dos muros cegos das cidadelas das palavras.
Naquele tempo, não percebia, mas hoje sabia, que sua liberdade só seria conquistada na catarse de seu passado, do seu tempo de transmutação. Como o foi.
E uma lágrima agora lhe desce cálida, amarga de sal e silenciosa, por não ter sido compreendida nesta etapa de sua caminhada. Por ter perdido o equilíbrio emocional e agora carregar prá sempre em seus costados a Flor de Liz dos loucos e desatinados, sendo que nada, ou tudo do que fez - mais de 300 anos de trabalho escravo em árdua busca da liberdade - não foi considerado, mas, desfeito no ar...
E ouviu as palavras mais duras. E sentiu a dor mais atroz. E sofreu o afastamento mais feroz.
Mas, ela ainda fala, ainda ama. Ela ainda diz. Ela ainda sente. Ela ainda é gente, ela ainda é mulher.
Mulher que fala hoje - mesmo se em pausas entrecortadas por soluços e impedimentos da vida, mesmo se em sussurros diz -, fala em meia voz:
- Você me afastou em vão. Você não pensou em o meu sentir, assumindo-se - sem que lhe pedisse -, ser anjo de proteção, anjo de cuidados e tutor de minha vida.
Hoje, asas quietas e longínquas, permaneces sempre em mim - apesar de tudo, ainda a caminhar em meu espírito, a cobrir minha face, a abraçar minha alma -, meu companheiro, meu amor, meu mestre, meu irmão, meu amigo!
(III)
Agora, via-se como uma criatura estranha a si mesma, e como que imaterial. De cabelos cor de fogo, espalhados pela alvura do travesseiro e o semblante pálido, de olhar triste e penetrante e ao mesmo tempo curiosamente trigueiro, como os que agora contemplas por entre as pétalas da rosa dourada. O crestado da face alva, as placas marrons sardentas, surgiam na tez cerosa, enquanto as pálpebras azulavam e um círculo malva e lavanda, cobria a comissura dos lábios. Via em si mesma os estigmas da morte.
- Não faça isso minha pequena – sussurrava, inclinado sobre ela semi-inconsciente, um anjo azul -, não faça isso !
Mas sua alma mirava as asas do anjo, fracas, cortadas, podadas, caladas e quase apagadas, com soberana indiferença, e, com o mesmo descaso, as sombras que se agitavam ao seu redor. Queria ser igual. Ah! Como queria ser igual. Queria ser assim, um anjo calado, um pássaro de asas apagadas e abatidas, uma ave em apatia de vôo.
- Não vá minha menina, não vá. Vamos dar as mãos, andar de mãos dadas e mostrar ao mundo o valor e a beleza do amor !
E algo crescia dentro dela. Um vento de tempestade se encrespava em ondas gigantescas e a embalava nos braços do desespero. Prá lá, prá cá! Prá cá, prá lá! E o turbilhão ressoa com força. O estrondo se faz sentir em relâmpagos e raios aterradores...
E, dentro dela... a guerra. E fez-se a guerra dos mortos e feridos na dança da maestrina.
Do lado de cá, aproximava-se uma carruagem de portinholas gradeadas e panos negros e fechados, acompanhados de uma sólida escolta de 10 mosqueteiros da morte. Do lado de lá, vindo da montanha azul, o exército do sol, um esquadrão de anjos de luz, sentinelas do tempo, guardiões da eternidade, guerreiros valentes e inflamados de amor e paixão, armados de flecha e arco.
Com o sopro da brisa do sol, cálida e doce, erguiam-na sobre lençóis limpos, lençóis de paz e aqueciam-lhe a alma, friccionando seu espírito com o bálsamo da ternura e do amor.
Enquanto os soldados do sol guerreavam com os mosqueteiros da morte, o anjo azul fazia-lhe beber no cálice de vinho quente e temperado de ternura e amor.
- Beba minha pequena, beba. Mesmo exaurido, cansado, sem forças, te trago a taça das palavras, com gosto. Beba-as. Beba essas palavras, que mesmo saídas de mim, são tuas ! Beba-as !
E ela sentia o cheiro ocre do vinho, o odor de canela, do gengibre... o sabor atual do chocolate quente... o cheiro de poesia e sonhos no ar...
- Ah! O odor das especiarias... o odor das viagens felizes ! Não fora algo parecido que pronunciara Saravy antes de morrer ?
Ah! O aroma das viagens para dentro do mundo das palavras, para dentro de si mesma, para dentro das profundezas do seu abismo interior...
- Abra os olhos para a vida minha pequena. Abra o guarda-chuva celeste. Abrace o sol bem apertado, que sempre esteve ao teu lado. Dê o seu mais belo sorriso. Esquece as mágoas lá no fundo. Em breve chega a primavera. O frio do inverno já vai embora !
E ela fragilizada, doente, perdida, abria os olhos e só conseguia ver a noite, a escuridão.
- O que você vê não é a noite minha menina. É a neblina do rio que corre forte no fundo do vale. É a névoa quente da manhã que abraça a montanha. É só a neblina do rio e a névoa da manhã. Logo ela se esvanece nos raios quentes do sol.
E, o mutismo dela, o medo estampado, a face em dor, mesclado a imensa vontade de mudar, ao desejo de ser a fada que lhe soprasse o milagre da vida na alma, a férrea ânsia de ser mulher, crescer e ser mulher simplesmente, o tocavam profundamente...
- Como segurar a lágrima ? Como segurar a lágrima que teima em cair do canto dos olhos ? Muito obrigado por seres alguém tão especial em minha vida !
E dentro dela a vida começava a ganhar matizes, a vontade de continuar começava a brotar em meio às suas e as lágrimas que desciam dos olhos sol... o anjo azul, o rei de todos os astros do céu do universo de luzes.
E aos poucos, um sentimento forte, avassalador, despojado do medo, lhe atravessava o âmago do ser. Era como se um rio de águas caudalosas, de torrentes selvagens que ainda não sabiam para onde ir, mas sentiam o gosto de por algo lutar, crescessem nas profundezas do seu interior. Um desejo arrebatado de sobreviver para continuar a caminhar a estrada que lhe estava outorgada como sina realizar.
Acordava para a vida mais uma vez. Quantas vezes já tinha morrido dentro de si e outras tantas renascido ?
Agora, estava lúcida para compreender que o perigo que lhe ameaçava a liberdade era grande como o medo que outrora lhe aprisionara por séculos e mais séculos numa infância de vida seca, árida e sem amor.
Agora, retornava da morte para a vida, rodeada de guerreiros afoitos e armados, anjos azuis, com 7 talentos enrolados em fios de ouro sobre a bandeja de prata, cada um com um nome, formando 5, que a conduziam não se sabe para qual punição definitiva e libertadora, para qual pedra filosofal, para qual cárcere...
Que fosse - sonhava viva -, para sempre... o cárcere do amor !
(IV)
Um chamado trêmulo elevou-se na noite, flutuou um pouco e extinguiu-se, como que extenuado. De onde vinha esse grito? Não seria de dentro dela?
Sua alma navegava na antiguidade, nas asas de sonhadores e pensadores de quem nunca tinha ouvido falar, mas que agora lhe encantavam como o pio aveludado, frágil e distante que ouvia e que a bruma irisada de luar tentava abafar. E mais uma vez o chamado trêmulo lhe cortou a alma. Era como um gemido que crescia ao tom de uma certa angústia, um certo medo.
- Amor, Amor, neste mármore frio, não me deixe sozinho morrer !
Seria esse o medo que sentia neste grito? O medo da solidão, da morte? Ou era o grito desesperado de alguém que ama e não consegue mais vislumbrar a vida sem o objeto de seu amor?
Olhou para o chão, para o luzir do mármore negro e branco onde móveis se miravam. Seu olhar perdeu-se naquele chão, tentando encontrar nem que fosse uma pequena sombra dos lábios que bramiam esse grito desesperado e angustiante.
Que lugar era esse onde se encontrava? Que mundo seus sonhos lhe trouxeram? Não conseguia vislumbrar mais do que o chão brilhante como uma luzerna, uma escada de corrimão forte que parecia subir ao céu, uma janela do tempo...
No fundo da escuridão, uma luz suave penetrava pela janela do tempo aberta. Uma luz calma, azul de cheiro, leitosa, que ao se espalhar, crescendo na obscuridade, trazia em seus braços toda magia de uma noite de primavera. Podia sentir o seu cheiro, a sua proximidade.
Atraída por ela, ergueu-se sobre si mesma e avançou com o passo trôpego, de uma alma errante, na direção do raio prateado.
Aprisionada em sua claridade, diante da lua poderosamente redonda, roçando a montanha, ela desfaleceu as forças da alma. Apoiou-se no umbral. Tinha de se manter em pé. Não poderia titubear diante das adversidades. Não, não poderia mais.
Diante dela, sob o céu noturno, um alto penhasco de sombra recortava um denso encapelamento imóvel de árvores com cimos frondosos, galhos que se projetavam em candelabros regiamente vestidos de folhas e troncos maciços cujas colunas, sustentando esse "santuário do coração", mostravam-se graças a uma abertura no tempo, uma clareira açoitava pela lua, como no dia em que a "lua virou sol".
- Você ! - suspirou ela. Você !
De um carvalho próximo, o pio noturno tornou a erguer-se, subitamente nítido, cortante, trazendo as saudações da terra que agora caminhavam seus pés.
- Você ! - repetiu - Você ! Meu Bocage, meu Castro Alves, meu "Lírio da Manhã". Você !
E assim que falou, o sonho que a acordava prá vida, esvaneceu-se na brisa morna.
Soprava um vento brando, imperceptível e de incomparável ternura, em lentos movimentos que não se adivinhavam, senão por vezes, ao aroma mais acentuado de uma espinheira em flor.
- "Flor espinheira" ! falou a si mesma baixinho. E então lembrou:
- Quem com seus dedos uma flor espinheira tocar, viverá permanentemente na tristeza...
Seria assim mesmo ? perguntou-se. E nunca até hoje alguém respondeu sua pergunta, nem o porque do surgimento dessa lenda tão próxima.
Mas, o sol apagou-se, a lua se esvaneceu, as flores morreram, a "primeira página" do livro se fechou e nunca mais ninguém nem soube onde ele está escondido, nunca ninguém mais encontrou as 7 chaves da porta das palavras escritas nele.
Com esses pensamentos a tristeza invadiu sua alma e contaminou o pouco de forças que lhe restavam para viver. Estava morrendo outra vez...
Quando sua alma se ia deixando levar pela tristeza e a dor das inquietações, eis que em sonhos lhe surge o anjo azul:
- Não desanima minha criança, não se deixe levar pela insanidade e morte outra vez. Vem, toma minha mão e segue meus passos. Eles não sabem para onde vão, mas tem asas e podem voar quando não conseguires mais caminhar.
Olhou para a luz a sua frente. Não conseguia ver seu rosto em meio à claridade. Não vislumbrava sua face. Mas uma imagem se formava em meio à luz. O rosto de um menino, olhar perdido, sonhador, agasalho de frio... Foi a face que conseguiu enxergar em meio ao caos que trambolhava em seu interior.
- Não tenha mais medo, são vozes de crianças o que ouves. Crianças que brincam sem medo de viver. Sem se preocuparem com o ontem ou com o amanhã... Apenas querem brincar e ser felizes !
Aspirou o ar. Os pulmões dessecados reencontraram inebriados a umidade salvadora, que subia até ela em passos largos, num tropel urgente, umedecidos pelo hábito de todas as fontes e o incenso das seivas novas.
Aos poucos a fraqueza deixou-a. Afastou-se do umbral que lhe apoiava. Olhou ao redor. O que via?
Via-se a si mesma, com 15 anos, selvagenzinha, curiosa, desabrochando prá vida, sorriso nas faces sempre fofas e coradas pelo frio sulino.
Mas, já não tinha crescido? Não era agora uma mulher? Por que continuava sentindo-se menina em cada poro do corpo?
- Não me provoca ! ouviu uma voz profunda dizer.
- Eu adoro provocar você !
Parecia ouvir as brincadeiras, o riso de alegria, a festa interior.
Mas então... Caladas e sem brigas, sem lutas de crianças, as vozes foram embora. Ninguém sabe para onde foram. Apenas se foram, assim, assim, sem deixar endereço, sem guardar rastros e nem pegadas por onde se pudesse um dia, um novo som, um novo acorde de vida encontrar...
Ela curvou-se em si mesma. Olhou o lajeado negro e branco. Sobre ele dobrou os joelhos e foi descendo, deslizando de mansinho. Ao tocar o chão, encolheu-se como um animalzinho, abraçando-se a sim mesma. E a voz do anjo sussurrava-lhe ternamente ao ouvido:
- Mesmo presa, com a marca dos grilhões... Mesmo com os pulsos feridos... É possível, é possível !
Uma serenidade profunda dera lugar a angústia que não cessara de persegui-la no tanto de tempo em que permaneceu em seu desequilíbrio emocional.
- Estou em casa ! pensou, libertada. Estou novamente em casa, dentro de mim, no coração do sol. Em casa... Então tudo é possível ! Tudo ! Tudo é possível !
(V)
Diante dela, 7 conselheiros do rei, senhor das roças. Ela, frágil, abatida pelo silêncio, com os olhos semicerrados, ouvia a voz de um dos conselheiros que lia a missiva enviada a sua pessoa pelo rei, senhor das roças:
“Senhora, grande foi nossa dor quando, séculos atrás, respondeu com desobediência e ingratidão aos favores com que nos havia aprazido em cumulá-la, à senhora e a todo o seu reinado. Dedicamos-lhe "7 trabalhos" a saber, os 7 possíveis de serem realizados. Em sua homenagem construímos os "sonhos zebendos", os quais a senhora descobriu antes mesmo de lhe levarmos até eles. E quantas e quantas serenatas não foram cantadas em sua janela, as quais a senhora ousou ignorar como se nunca as tivesse ouvido ou que não fossem para si? Diante disso, optamos por bem, condená-la a passar o resto da vida escrevendo suas estrepolias e vivências. E o que a senhora fez? Recebeu ordens de nunca parar de escrever e no entanto ignorou-as. Ordenamos-lhe que não respondesse a missivas de outrem que não o rei, que não dirigisse a palavra a quem quer que seja que não fosse o soberano senhor das terras e como a senhora se comportou? Avessa e contrária a tudo o que lhe ordenamos como lei. Foi assim que a senhora se apresentou por todo esse longo tempo. Por isso lhe aplicamos a disciplina de nunca mais sair do mundo do sol. Sabedores de sua natureza impulsiva, seu gênio incontrolável, seu intempestivo temperamento, não seriam essas ordens ditadas pelo desejo de preservá-la de si mesma e dos atos inconsiderados que poderia sentir-se tentada a cometer? E a senhora os cometeu todos. Lançou-se diante dos perigos e desilusões que desejávamos evitar-lhe, e por eles foi severamente punida. O caos se fez em sua vida, e no meio dele lembrou-se de quem os conselhos e ajuda, desprezou. O apelo desesperado de salvação chegou até nós pela voz das canções que dedilhavas no eco do tempo. Elas delatavam seu estado lastimável e advertiam-nos da triste situação na qual seus erros a haviam lançado. Cativa de seu próprio medo, do bárbaro e insolente medo, da mente desequilibrada e senil, a senhora começava a tomar medida de seus desvarios e, com a inconsciência habitual das pessoas de seu sexo, voltou-se para o soberano que injuriou, pedindo-lhe socorro. Em consideração ao grande dom que carregas, ao talento que lhe é fortuna, e à amizade que nos une ao mundo poético, e, por piedade à senhora, enfim, que continua a ser um de nossos súditos bem-amados, não quisemos deixá-la carregar todo o peso do castigo, abandonando-lhe aos cruéis delírios de sua própria loucura, e respondemos ao seu apelo. Mandamo-la buscar em meio ao terror da sua vida que vagava perdida no espaço do universo de luzes. A senhora está hoje salva no solo do rei senhor das roças. Rejubilamo-nos com isso. É justo no entanto, que nos peça perdão. Poderíamos ter-lhe imposto, na solidão de um claustro, algum tempo de necessária reflexão. Mas, a lembrança de seu sofrimento passado nos demoveu desta idéia. Sabedores de sua paixão pelo solo das terras do rei, senhor das roças, e de que o sol do mar pode ser o melhor dos conselheiros, preferimos enviá-la para longe de suas terras, para as terras da ilha da magia e das águas calmas. A senhora não estará no exílio. Nelas permanecerá até o dia em que, por decisão própria, tomará o caminho das terras do rei, senhor das roças, para protestar submissão completa à sua soberania. Na espera desse dia – que desejamos próximo -, colocamos ao redor da ilha um guardião que lhe tomará conta, encarregado de mantê-la sob vigilância... E ainda temos a relatar que a sua submissão deve se dar com as regras impostas pelo rei, a saber, 7 regras de submissão, que exporemos a seguir:
1 - Tendo a senhora nos ofendido publicamente em suas mais de 3000 mil cartas, a reparação deve ser pública.
2 – A senhora virá até nós em vestimentas humildes, negras, para estampar arrependimento.
3 - Se postará do lado de fora da grande "porta de madeira" do palácio e nela chorará "lágrimas aperoladas", sabendo que não poderá nunca mais – sem pedir perdão - acessar o pátio principal do palácio do rei, senhor das roças.
4 – Na presença de todos os deuses, as estrelas do céu, os pensadores, escritores, poetas, deverá postar-se diante do rei, ajoelhar-se, beijar-lhe a mão e renovar seu juramento de devoção e vassalagem.
5 – Será pedido à senhora, que dedique à coroa todos seu arsenal de escritos raros, e doe seus 4 reinos, a saber: "Recanto dos Cantos, A Escrita Natural, A Usina de Sementes, O Berço Noturno" e mais todo o "Cantinho para Reflexão" onde a senhora planta suas sementes.
6 – Será solicitado a doação inclusive do jardim do que "Os Seus Olhos Viram e o Álbum de recordação". Os pergaminhos e contratos de cessão e doação deverão ser entregues a nosso mensageiro-mor por ocasião da cerimônia de submissão, em sinal de homenagem e pedido de perdão.
7 - A partir de então a senhora deverá se aplicar a servir seu príncipe, rei e senhor, com uma fidelidade que desejamos plena, sem sombra de dúvidas. Após a cerimônia de submissão a senhora permanecerá nas terras do rei, senhor das roças, aceitará os títulos de nobreza e honras que sempre desejamos e nunca conseguimos conceder-lhe, mas que agora, com o espírito serenado pelo castigo a senhora aceitará quando houvermos por bem conceder-lhe e servirá ao rei com dedicação, seja em seu reino, em sua corte ou fora dela.”
Nesse momento, o mensageiro que lia a missiva do rei, interrompeu a leitura para ouvir a voz daquela que tanto machucara o coração do rei. Impressionados os 7 conselheiros ouviram uma voz “doce, falida e meiga”, como o tinha dito o rei sobre ela:
- Não pode parar senhor? Estou cansada. Estou morrendo, não vês? Poderia parar e me deixar morrer em paz?
- Pois aconselho-a a não continuar morrendo por tempo demasiado longo senhora, pois acredito que a indulgência do rei para com sua pessoa não seja eterna. E é de fato com essa recomendação que o soberano senhor conclui sua missiva. Saiba que sua majestade o rei, em sua bondade, concede-lhe vários meses de reflexão, antes de considerá-la para sempre uma rebelde irredutível. Mas, passado o prazo ele será inflexível, a senhora o sabe. Estamos em junho senhora. O rei sabe-lhe doente e abatida. Está decidido a ter paciência, mas se nos primeiros dias do milênio vindouro a senhora não tiver realizado o que lhe foi imposto para que obtenha o perdão, ele considerará sua abstenção como rebeldia.
- Que acontecerá então? Perguntou baixinho.
- A senhora será detida e conduzida a uma fortaleza onde ficará para sempre aprisionada e será torturada outra vez com seus próprios delírios...
Por muito tempo ninguém falou. O silêncio tornou-se gritante. Seu som poderia ser ouvido nos confins dos palácios do rei, senhor das roças.
O mensageiro foi o primeiro a romper o silêncio com sua voz grave e calma.
- A senhora não ignora que o rei, senhor das roças, está profundamente abalado com vossa ingratidão e desobediência. O rei já não é mais o mesmo. Sua alegria em cantar pelas manhãs já não existe. O rei não sai mais para olhar a beleza da vida na janela do tempo e inclusive, irado, ordenou que arrancassem todas as flores do jardim dos encantados e que jogassem pedregulhos sobre os canteiros, de tal maneira que nunca mais alguém pudesse sequer suspeitar que ali um dia foi plantada uma rosa dourada, uma "Flor de Mulher", uma "Rosa de Amor". Hoje o rei vive escondido, ninguém mais sabe dele, ninguém mais consegue chegar à sua presença. E a senhora há de convir ser a grande causadora desse mal que assola a vida do rei, senhor das roças. Os próprios súditos do rei já falam em colocar vossa cabeça à prêmio devido a sua insolência e sua rebeldia e ao fato de ser "Mulher de Danos", causadora de catástrofes e atentados contra o rei, seu reinado e até contra sua própria pessoa.
Dentro dela brigavam sentimentos. O amor escondido que sentia pelo rei inundava-lhe a alma e lhe empurrava para o ato de submissão. Mas, ao mesmo tempo, seu orgulho gritava que esse ato, essa prova tão sofrida, lhe abateria a soberba para sempre. Então perderia sua força indomável e torna-se-ia igual aos outros, poderia tornar-se um dócil instrumento em mãos feitas para guiar os corações e seus destinos. Mas não era isso que desejava? Não era uma mão prá lhe cuidar, guiar seus passos, orientar os caminhos da vida que ela até hoje, em sua rebeldia, nunca soube achar?
Os 7 rostos encaravam ansiosos as transformações que ocorriam na face pálida, os olhos grandes, um pouco tristes e penetrantes.
- Senhora, dê-nos prova de seu empenho e saberemos despertar a clemência do rei, senhor das roças para com vossa pessoa. Poderemos sugerir que atenue o rigor da penitência que quer infringir-lhe. Talvez consigamos evitar as vestes modestas, as palavras de vassalagem...
Diante dessas palavras ela recuou um passo para trás, altiva:
- Terminaram senhores?
- Não senhora, respondeu o sétimo conselheiro impressionado com a teimosia que via estampada na face branca como o papel. Trago ainda uma mensagem do rei em separado para vossa pessoa. Ei-la aqui. Ela tomou trimilica, o enorme envelope em suas mãos. Após romper o selo da teia de aranha, ela reconheceu a escrita do rei:
“Coisa pouca, bagatela para ti, minha insuportável menina querida, minha inesquecível...”
As letras dançaram-lhe diante dos olhos, ela tombou a mão trêmula sem conseguir ler o resto da missiva escrita de próprio punho pelo rei, senhor das roças e do seu coração. As pernas fraquejaram. A voz travou-lhe na garganta. Não fez mais nenhum gesto. Apenas seu olhar cravou-se profundo nos 7 cavalheiros que atônitos, não conseguiam compreender o que a abalara tanto o ser, a ponto de sua voz faltar e sua altivez desaparecer por completo da face perturbada. Diante do silêncio que não calava, os enviados do rei, resignados, ergueram-se e já se retiravam quando ouviram uma voz:
- Senhores, digam ao rei que ele não tem o direito de ser bom para comigo.
- O que isso quer dizer senhora? Julga-se indigna da bondade de Sua Majestade?
- Não. Apenas quero dizer que a bondade não cabe entre nós, disse ela num fio de voz.
- Não compreendemos senhora. O que estás a nos dizer? O que cabe então entre uma rebelde indomável e o seu rei?
Ela tremia, sentia-se navegando em mares nunca antes vistos, pisando em nuvens que dançavam no céu sem direção. O coração bradava descompassado... A voz engasgava na garganta, mas armou-se de um último ato de coragem para falar com os olhos chameados, chispando sentimentos, brilhantes de emoção:
- Entre nós... só cabe... amor !
(VI)
A exuberância de folhagens de cor de verde frescor, de sombra, enchiam-na de um grande entusiasmo. Dizia a si mesma que estava viva, que seus ossos não branqueavam mais, e que um inacreditável milagre permitira-lhe continuar "Sempre em Frente".
Os campos ocultos pelas sombras das árvores, apresentavam-se aos olhos que os contemplavam, com o mesmo aspecto encrespado dos domos folhosos, laqueados de luz.
Campos longínquos, onde nem mesmo o som dos sinos da igrejinha da vila ao lado, podiam chegar. Horizonte de planície invisível, dominada pelo trigo e o vento que assovia dia e noite, noite e dia.
Com que finalidade Deus a reconduzia em sonhos, ao quadro familiar que lhe moldara a alma? Para qual lição, que ela se recusava a entender? Para a descoberta de qual verdade que dela se escondia desde a infância nas dobras dessa terra, desses campos azulados pela névoa da manhã e batido pelas vagas do vento minuano, que no rigor do inverno que se inicia, dobra as hastes de trigo sem trégua?
Terra dos Índios Guaranis, das guerras religiosas, de revoltas e pilhagens, das Missões dos Padres Jesuítas, dos Farroupilhas e Maragatos...
Não ficavam perto dali, as ruínas de São Miguel das Missões, onde as tropas católicas catequizaram o povo guarani e construíram catedrais de pedra pura com os braços escravos dos donos da terra?
É no sangue desta terra que nada a história do povo guarani. E é no sangue desta terra que ela veio à luz e neste barro que moldara seu espírito.
E era agora, diante destes campos cobertos de neblina, com a aurora já brilhando na linha do horizonte, que uma visão lhe obsedava: a de que um cavalheiro aparecesse pelos trigais, batesse à porta do seu coração, a tomasse nos braços e lhe murmurasse aquilo que em seus sonhos mais íntimos, não escreveu senão para uma única mulher...
- “ Minha inesquecível”...
(VII)
Ela corria sob as árvores. Tirara os calçados e o musgo fazia-lhe bem aos pés descalços.
Às vezes, parava para ouvir os sons da natureza. Mas, num lampejo de vontade, olhava o caminho adiante e precipitava-se novamente a correr.
Ah! A embriaguês da liberdade ! Ela ria baixinho, consigo mesma, aspirando o perfume no ar.
Sentia-se uma criança outra vez. Traquinas e feliz. Os cabelos soltos ao vento, refletindo a luz do sol, dançavam ao sabor da música do vento.
Enfim chegava aonde queria: o sopé da montanha azul.
Sentou sobre o chão coberto de musgos e florezinhas para descansar por uns minutos.
A corrida desenfreada a deixara ofegante, a face afogueada, mas os olhos chispando alegria e paixão pelo que, sonhavam, encontrariam no fim do caminho.
As batidas do seu coração atenuavam-se e radiante, ergueu-se e pôs-se a escalar os rochedos musgosos a sua frente.
Queria chegar ao alto do monte. Sabia que de lá a visão seria esplêndida, fantástica...
Quanto mais perto do cume chegava, mas crescia sua ânsia. Ao se aproximar do alvo, aprumou o corpo, sacudiu os raminhos presos à roupa, alisou os cabelos que o vento desatara e espalhou-os pelos ombros, sorrindo por sentir a importância de cada gesto em sua vida.
Avançou, agora já tímida, tomada de apreensão. Os cabelos cairam-lhe nos olhos. Afastou-os com impaciência. Mas, logo o múrmurio do rio lhe trouxe paz e serenidade.
Diante de si, ainda um pedaço de rocha a escalar. Faltava tão pouco para chegar lá. Apenas alguns passos e o paraíso se faria em sua vida.
Um caminho estreito, coberto de heras que formavam uma cortina espessa a impediam de chegar onde sonhava... mais uma porta cerrada em seu caminho não a impediria de avançar...
Estendeu a mão e devagar ergueu a cortinha de folhas. Embascada seus olhos, profundos e penetrantes, contemplavam a luz a sua frente: a face do sol, iluminada de calor, sorria, aquentando-lhe a alma e o coração, fazendo-lhe arder o sangue nas veias...
Olhou o mundo encantado ao seu redor. Diamantes cintilavam nas mil folhas. Pirilampos jorravam da plumagem dos castanheiros e os carvalhos e plátanos pareciam bordados de prata.
Ela tremia de emoção. Medo e timidez lhe venciam o ardor do sangue. Medo de chegar perto, tocar o sol e ele se apagar como todas as vezes em que sua mão o sentira próximo. Medo de o sol se apagar outra vez e ela deslizar na sombra sem nome que a ramagem da floresta abre aos sonhos que se desfazem.
Quem era ela para ousar tocar com a sua a alma do sol? Era apenas uma menina, surgida na terceira hora, na proximidade do crepúsculo com uma única palavra dita em duas:
- É verdade !
E ela ousara falar. Ela, uma menina tímida, vinda do nada, os cabelos de ouro à sombra de um capuz de pastora, um manto de monja, pés descalços e linguajar apurado, mas arisco e selvagem. E falara. Deixara falar a alma, o espírito, o coração.
- Teria ela consciência da vida, da paixão, não formulada, que se metamorfoseava em suas palavras? perguntava-se o sol meiado de amor, camuflado em raios que se acendiam e se apagavam ao som das palavras e canções.
Ela, olhos extremamente fundos sob as sombrancelhas espessas, fixava o inacreditável dos seus sonhos com intensidade.
Mas o tempo é inimigo das horas e dos sentimentos. Com o deslizar da "alça de ponteiros" que iam e vinham sem encontrar a fórmula secreta de juntar duas esperanças, dois sonhos, seus olhos foram se apagando... Dir-se-iam dois pontos dourados, cuja luz penetrante, atenuava-se misturada ao falar desenfreado, acabando por fatigar a ponto de fazer silenciar o sol... um silêncio que doia... que feria e morria...
E tudo ruiu como o dia. O crepúsculo cresceu, as cores queimavam no fogo avermelhado dos desencontros... o sol ia se indo... os sonhos se apagando... as lágrimas descendo.
E como uma contradição, quando a luz ia se apagando, ela, diante do caos, das descobertas que fazia de si mesma, do silêncio que a forçava falar as emoções, descobria agora, tarde, que uma força lúcida habitava seu corpo, uma paixão habitava sua alma.
E desmoronou para a morte tantas vezes que o caminho já lhe era sem dor, anestesiado em seus sentidos.
Mas cada vez que sua alma morria, reencontrava a inebriante impressão de ser invencível que amiúde a invadia no momento de empreender uma tarefa difícil. Decerto a impressão fora por vezes ilusória, pensou, pois sob seus passos o solo lhe era agora instável, o silêncio se eternizava, a "Dor de Morte" fervia. Mas essa mesma dor a fazia lutar para viver.
A tempestade interior se precipitava como em junho se amontoavam, milênio após milênio, as nuvens cinzentas de frio no céu brilhante da "montanha azul". A efervecência interna nascia como da primeira vez, na "Dor Que Toma Minha Alma"...
E o tempo ia passando... O sol já havia se escondido dentro de si. A lua saia de trás das árvores num halo crisado, revelando os esconderijos das aves e o surdo galopar de um coração apaixonado.
Os cães, indiferentes, latiam ao longe...
Não, não se deixaria morrer. Não se deixaria morrer, porque uma mulher jamais se reconhece vencida. Nem com as luvas mais resistentes e macias ou com a indiferença - quanto mais com o medo - se consegue manejar essa arma cortante que é a força de uma mulher que acredita no que sente, no que diz, no que faz, no que é...
Não, não deixaria essa chama que em seu interior nascia... se apagar...
(VIII)
O tempo passou mesquinho, roubando história e sonhos. Deixou um rastro de pó que ela cobre de lágrimas para formar a argila de uma nova estrada. Estrada que se inicia nas lutas, vitórias e derrotas, dos claros e escuros, da morte e da vida, nos calcanhares de um passado que o tempo cuidou de apagar.
A vida e a morte misturavam-se tão estreitamente que a cada dia era necessário perguntar sobre o que, em verdade, era importante: viver ou morrer, morrer ou viver !
Assim se aprende a conhecer-se. E agora ela se conhecia. E isso talvez fosse o mais desesperador. Enquanto uma mulher duvida de si própria, ainda é possível fazê-la mostrar-se razoável, maleável.
Mas quando atinge a maturidade do espírito, estando de posse de si mesma, pode-se temer o pior, pois não obedece mais senão as próprias leis. E era isso que ela temia. As suas próprias leis, regidas por um temperamento genioso e insuportavelmente apaixonado pelo desconhecido que rondava sua alma.
Temia não a si mesma, calma, tranqüila, serena, mas as outras de si, estabanadas, enroladas, intempestivas. Era a sua personalidade desconhecida até então que ela temia ao descobrir-se.
Alguns aspectos dessa personalidade eram inúmeros e se apresentavam como vagas sucessivas, surgindo, uma após outra, dos repetidos embates em sua vida. Guerreiras empunhando bandeiras que quanto mais miseráveis e perdidas, mais aguçavam seu espírito ávido de guerras interiores.
E não havia como reter a marcha do destino, o impulso irresistível que sem cessar levava sua existência para lá e para cá, por abandonar-se a flexibilidade, aceitando-se diferente a cada dia e não procurando se definir.
A vaga de sua misteriosa odisséia levara-a para além das aparências. Não mais se contentava com ilusões e nem com mentiras. Sabia-se detentora de sentimentos profundos nunca antes sentidos. E essa verdade fazia nascer a mentira de sua vida. E as lágrimas nasciam-lhe nos olhos ao pensar que, agora, não importava mais a ninguém ela saber essa verdade. Descobrira tarde demais - mesmo que não seria a mulher que era se tudo passasse desapercebido em sua vida -, descobrira tarde demais...
Sentia-se fraca. Era fraca. Mas, sentia-se forte com as descobertas de si mesma. Seria ela uma contradição? Sabia-se forte e fraca ao mesmo tempo e isso a assustava. Sua força vinha do seu desprendimento, da descoberta de quem era, mas sua fraqueza nascia de saber-se pequena e impotente, de não poder amalgar-se aos sonhos que sonhou com tanta intensidade.
Sentia-se mulher até a medula dos ossos. Mas de que adiantava saber? Agora o sol já tinha se ido, os ouvidos se calaram, as vozes ficaram surdas... Chorando, desejou ser menina outra vez, para viver a inocência das descobertas ainda escondidas...
Que adiantava ser mulher? Como poderia viver sem o amor, sem a beleza das flores do jardim, o cântico do pássaro da manhã, o amanhecer de uma noite, e o alvorecer de um dia enluarado?
Lentamente caminhou até a janela do tempo. Abriu-a emocionada pela duodécima vez naquele minuto. Nada viu. Ninguém encontrou. Via só sua imagem na última página de um livro que um dia escreveu. Via o que os olhos podiam ver: as pétalas de uma rosa dourada ou um espelho d`água rondando sua imagem de duas voltas da terra ao redor do sol:
Onde estava sua vida? Onde o sol que lhe fazia luz e a quem deveria iluminar?... Desejava ardentemente passar sua vida iluminada nessa luz que girava entre dois grandes espíritos, elos que se acham após longo tempo perdidos de si mesmos. Então, ela não seria essa sucessão de dias marcados pela dor, pela espera vã, a alegria cortada pela raiz, a angústia a contemplá-la ainda ferida, com as marcas do martírio pousadas como um véu sobre sua face, deixando apenas entrever-lhe os traços purificados pelo sofrimento e a saudade que agora fazia a eternidade em sua vida... desde que encontrara, abandonada, como uma flor ao léu, o Fim.
(Fim)
“É isso que deseja falar-me, ou há algo mais que queira dizer-me, algo mais rondando seu espírito?”
Era-lhe difícil falar após ter se calado por tantos e tantos anos. Será que ele não conseguia isso entender? E será que não a ouvia? Ela estava, dia após dia falando e falando. As palavras atropelavam-se em seus lábios, as frases saíam entrecortadas e como que arrancadas do peito, numa desordem que a incomodava: sua prisão interior, o aprendizado do primeiro vôo, "A Morte da Ave", O Rei Senhor das Roças, "O Silêncio"...
Estava literalmente esgotada de tanto falar, vazia, a fronte cansada, suada... extenuada...
- “Seja você mesma !” “Deixa falar o seu corpo... deixa falar o coração !”
E ela falava e falava. E parecia sempre pouco, parecia sempre menos. Parecia sempre... nada ! E o desespero a fez perder o controle das palavras, da voz, o equilíbrio...
E tudo falou, tudo falou, mas sabia, ainda hoje havia algo não dito. Ainda existiam palavras ocultas, escondidas atrás de uma porta fechada. Uma porta que ela jamais abrira... assim como nunca, na casa do sol, adentrara por esta mesma porta. Por que?
Tinha medo de si mesma ! Tremia a simples idéia de debruçar-se sobre si mesma outra vez, sobre esta porta fechada, cerrada...
- Mas... que temo tanto ver? Perguntava-se.
- “Liberte-se” - insistia uma voz, escondida num canto do seu coração -, liberte-se prisioneira de si mesma. "Liberte-se, senão nunca poderá reviver".
- Reviver! Reviver! "Prá que reviver? Que quero eu com a vida? Ela fez de mim esta mulher que me amedronta", que me vence, que me tolhe as forças de me esconder. Não quero reviver. Eu morreria agora, de bom grado, grata ! Eu morreria!
E o eco de uma voz, que não sabia quem dissera, mas sabia vinda do passado, da vida de uma mulher, uma guerreira, que sentia-se igual, ressoava em sua mente:
- "É um reflexo do cansaço. Mas o gosto da morte, o sabor da morte, vêm somente para aqueles que se realizaram na vida, quer tenha sido curta ou longa, para os que viveram o que desejavam viver. É como o canto de Simeão: "Meus olhos contemplaram o Redentor; agora só me falta morrer". Mas enquanto um ser não se realizou, enquanto vagou longe de seu objetivo e só conheceu a derrota... não pode desejar morrer... o esquecimento, o sono, o nada, sim... Cansaço de viver? Isso não é a morte. A morte, esse tesouro que Deus nos confia junto com a existência, essa promessa inefável... essa certeza..."
- "De fato" – pensava -, essa voz tem razão. "Não posso morrer agora, seria perder". Só devo viver. "Morrer na derrota, que ridículo!"...
Ela debatia-se consigo mesma. Respirava apressadamente. Por que ainda tinha medo de si mesma? O que lhe faltava libertar de dentro de si? Por que evitava debruçar-se sobre si mesma outra vez? Por que fugia de seus sentimentos mais íntimos?
Precisava libertar-se totalmente.
"Mas no que consiste a liberdade humana? Não era na absolvição de si mesma?"
Não era na devoção a Deus que lhe perdoara os pecados todos na cruz do calvário? Por que ainda os carregava num fardo pesado demais para sua força, para seus ombros cansados? Por que ainda se debatia em pagar pelas dores do passado? Por que não abria o seu melhor sorriso?
- “Só na alegria é possível o reencontro !”
Só na alegria, ela ouvira. E não conseguira entender! Como se auto-condenava por isso. Como se punia por não prestar atenção nos detalhes. E com seu jeito de ser tornara-se em Mal para o coração do sol.
- “O Bem que se tornou Mal e vice-versa !” E ela nem percebera. "Como era difícil definir o Bem e o Mal" quando se viaja nas ondas do tempo.
Tinha ouvido falar que "o Mal é o que você sente como prejudicial a sua saúde moral. O Bem é o que satisfaz seu critério pessoal de justiça."
Justiça, justiça. Essa palavra ecoava em sua alma, tamborilava em sua mente.
- “Estamos sendo injustos com os outros e conosco mesmos.”
Então ela tinha de pensar nos outros. Mais uma vez pensar nos outros. Não conseguia entender. Outra vez? Sempre de novo? Por que? Por que tinha ela de pensar só nos outros, esquecer de si? Toda vida fizera somente isso. Deixara de viver sua vida para cuidar dos outros. Deixara de cuidar de si, seu corpo, sua saúde, sua mente, sua alma, seu coração, para cuidar dos outros. Deixara de viver a vida por causa dos outros. Por causa do que os outros iriam pensar, dizer, fazer... Tanta coisa deixara se perder nas vagas do tempo para ser justa com os outros...
E ela, cansada... deixou de olhar para as entrelinhas, deixou de perceber o pano de fundo da descompensação e da desativação... e... pensou nos outros mais uma vez... não pensou em si. Não levou em conta o que sentia, pensava... nada... E o nada se fez...
Agora sentia-se como já tantas vezes havia escrito. Assim, assim, com a sensação de vagar perdida, suspensa nos ares. Lembrou-se do que o sábio falou à mulher guerreira:
“Na matemática, aprende-se que nem todas as soluções de um problema são necessariamente mensuráveis. Isto é, decorrentes uma da outra, e traduzindo-se para um resultado positivo. Um caso simples: não sabemos se a solução de uma equação matemática é “mais” ou “menos”. Ou por outra, se se ganhou ou se se perdeu. A simples extração da raiz quadrada propõe um problema filosófico considerável: qual é a raiz de um numeral negativo? Diante da vertigem, da sensação de impossibilidade de nossa mente, tranqüilizamo-nos declarando que é um “imaginário” ou uma língua trigonométrica. Ora, isso é admitir não mais saber o que acontece, pois significa que passamos para um outro plano de estrutura física. Diremos, por comodidade da mente, que “passamos por uma solução de continuidade”ou “passagem para o infinito”. Que profundo abismo é esse infinito, mesmo que não seja pura matemática! Pois também está presente no cotidiano. E quando nossa mente não mais enxerga uma solução “plana”, a passagem para o infinito, ou o irracional, ou o supranormal impõem-se por si mesmos. Deles emergimos para a corrente habitual da vida, mas a solução já foi, em verdade, encontrada...”
Por que nunca tinha ouvido falar disso antes. Por que levara tantos milênios sentindo-se assim, pairando no ar, sem encontrar as soluções que tanto buscara, as respostas que ansiara? Por que tantas e tantas vezes se perdia na conjuntura dos caminhos tentando achar a solução para tantos nós que os amarravam? E por que, e essa era a sua maior dor... nunca, nunca o sol lhe falara tudo isso? Por que não descera do seu céu, do seu pedestal de sabedoria pra lhe dizer que nem tudo o que perguntava tinha uma resposta clara e definida, concreta. E por que não lhe ensinara que haviam soluções que não se davam senão nessa tal passagem para o infinito?
E ela tanto buscara, tanto brigara e agora percebia que havia lutado em vão... E a pergunta crucial, fora respondida?
Quem era ela? Sabia que era daquelas mulheres que precisavam lutar para sentirem-se elas mesmas. Sabia que se sentia diferente das outras mulheres. Mas por que sentia-se assim não sabia dizer. Quem sabe essa pergunta era uma das que a “passagem para o infinito” poderia responder.
Não se contentava com uma vida comum, com bordados, tricotagens, conversar frívolas sobre o ranço do tempo, sobre os acontecimentos do dia. Não se contentava com uma vida de “terapias ocupacionais”, uma vida construída sobre uma existência vazia.
- “Faça alguma coisa produtiva. Deixe de ser tão vazia...”.
Como doiam essas palavras em sua alma. Como rasgaram seu espírito. Seria ela o contrário do que desejava ser? Seria ela o avesso do que achava que era? Mas, quem era ela?
“À vezes, parecia-lhe ter sido feita para uma felicidade simples, rústica: um homem para amar, crianças ao redor da mesa, para quem fazer doces”. Onde ouvira isso? Lembrara-se das pipocas, chá ou café, nas tardes friorentas? Esse era o desejo de todas as mulheres, ou não? Como saber? Como poderia ela saber do que ia nos cantos dos corações das outras mulheres? Mal entendia e via o que se escondia nos cantos do seu. Sentia-se simples demais diante das outras mulheres. Não que as coisas que as atraíam não lhe tocavam: os prazeres do material, os adornos, a admiração dos homens. Mas logo via que isso não lhe convinha. Queria muito mais da vida do que essas quimeras.
Agora estava diante do fim de uma de suas guerras. Uma das bandeiras que hasteara, por força de regimento, teria de descer do mastro...
Agora via: Era como aquela mulher do passado. Aquela com a qual relacionara sua vida, amarrara suas palavras para que não se perdessem. Como ela, amou profundamente a guerra. Não a guerra que aquela mulher lutara, mas as guerras que ela agora combatia. A aventura, a batalha, os embates, a expectativa da vitória, a reunião de forças dispersas num objetivo; e mesmo o medo, a angústia, a esperança de salvar uma situação desesperada, tudo isso lhe tocava, lhe fazia a alma arder... e mesmo sofrendo, mesmo penando, não se aborrecia, não se cansava...
Como podia ser ela essas duas? Seriam elas a mesma mulher? E como conjugar essas com todas as outras, que habitavam dentro de si, e a cada dia aceitar como aceitava, o acordar, o levantar-se de uma delas? Como conseguir ser tanta contradição dentro de um só coração?
Agora entendia tantos caminhos, tantas estradas. Agora entendia tantas atitudes. Todas tomadas para lhe despertar da apatia, arrancá-la do abatimento, fazê-la falar.
- “O coração aferrolhado se corrompe”, ouvira a guerreira. Agora, no seu tempo, essas palavras lhe causavam uma emoção acalorada.
Liberdade ! Liberdade ! Seu coração estava livre. Sua alma planava nas asas da alvorada de uma nova vida, de um novo mundo. Estava viva. Sentia-se a própria vida ! Era diferente sim, mas e então? Que mal havia em ser assim? Estava perto da natureza, possuía alvos, objetivos, valores fundamentais. E era isso que a fazia diferente. Por isso não se satisfazia com o mundo que a rodeava. Por isso colocava num plano totalmente diferente os valores que lhe eram importantes. Por isso estava sempre em desacordo com os que a rodeavam. Por isso era maravilhada com os frutos, com a beleza da vida.
- “O inverno já foi embora. Breve será primavera.” "O sol brilha lá fora..."
Será que ela tinha notado? Será que ela tinha percebido que todos os dias o sol saia de seu esconderijo e lançava seus raios pelo céu azul de sua vida mesmo que ela não os pudesse ver, nem mesmo sua voz sentir?
- “A mim só é necessário te sentir!”
Ela fechou os olhos. As lágrimas correram-lhe dos cílios formando "Laivos Aperolados" em sua face. Olhava para dentro do "Sepulcro do Coração" e via o halo da dor e do sofrimento que passara. Ainda não estava livre deles, sabia, mas já vislumbrava a certeza da vitória. Um silêncio profundo se fez dentro dela. Não era um castigo o silêncio. Não era um preço que devia pagar. Não, não era. Era o silêncio a única voz que conseguira lhe falar ao coração. Era o silêncio a única voz que lhe permitira ver a si mesma, olhar no próprio espelho, aconselhar a própria alma...
Algo se rasgou dentro dela ao surgir desse pensamento. “Algo se rasgou e sangrou dolorosamente. Mas não era esse sofrimento, e sua capacidade de suportá-lo, um sinal de ressurreição?” Reviver ! Ressurreição ! Liberdade ! Liberdade !
Lentamente fechou a porta de seus pensamentos. Encostou o portal das meditações. Quantas portas já não se haviam fechado para ela e por trás dela? Quantas portas já não lhe tinham barrado saídas, trancado entradas e colocado fim em caminhos? Já havia perdido as contas dessas portas...
Mas havia uma porta. Tinha de haver. A porta do seu caminho. Qual seria ele? Ela o via, sim ela o via e nele a luz do Sol. O Caminho do Sol. Era pra lá que queria caminhar. Era para esse caminho que havia nascido...
Tinha de ir. Precisava caminhar. Precisava viver mais um dia. Precisava falar e falar... mesmo que nada ouvisse, um dia... um dia, quem sabe, Deus lhe presentearia com a felicidade plena, com a realização de pelo menos uma parte de seus sonhos.
Agora conseguia compreender que os obstáculos, que o sofrimento e a dor haviam-na desviado dos caprichos comuns a toda gente e a reconduzido para um único objetivo de vida: o seu. O seu caminho. A perenidade do amor e a eternidade dos sonhos. Agora sim sabia quem ela era e para quem e para o que havia nascido...
Fim.
Maria
Enviado por Maria em 18/12/2014