Maria
Prosa e Poesia
Capa Textos Fotos Livro de Visitas Contato
Textos

Querido Joseph

 

Deixar de ser quem se é... não consigo. Sou assim. E, sei, tenho de mudar no sentido de controlar as emoções - nos lugares e momentos certos. Mas não quero controlar minhas emoções com você. Quero ser eu. Estou lutando pra isso. Pra me libertar ainda mais, porque me sinto ainda meio que com fios presos nas grades da gaiola que usei por tanto tempo. Esse libertar-se iniciou lá no primeiro dia no teu jardim e foi avançando.

 

No tempo de teus silêncios foi onde mais trabalhei isso em mim. Mas, o que vivemos agora é totalmente novo. Eu achei que já tinha conseguido cortar todas as cordas que me amarravam na gaiola, mas vejo que ainda tenho de vencer a timidez, o encabulamento, a vergonha de me mostrar, de ser eu de verdade. Eu sou pior do que você vê e sente. É muito mais profundo o meu jeito apaixonado do que hoje consigo "liberar". Preciso vencer algumas coisas - a timidez, o medo de parecer, sei lá, que só penso em amar (e penso), (também).

 

Eu queria aprender a falar sem precisar me utilizar de metáforas sabe? De enigmas... E tenho essa dificuldade. São cinco momentos em que fui mais livre no toque de pele.

 

Falando contigo como numa carta eu me expresso melhor. Eu consigo deixar a alma sair das profundezas e planar fora de mim para que você possa tocá-la, senti-la e eu também sentir as tuas mãos dedilhando em mim. É como eu me reportasse aquele tempo em que escrevia sem parar falando tudo que me ia em meus pra dentro, sem nem medir palavras, sem nem pensar. Escrevia. Era como se a própria alma tivesse a pena entre as mãos e o caderno sobre a mesa e se derramasse na tinta e nas páginas em branco.

 

Como agora - em que vou falando contigo. E isso é tão bom pra mim, eu me sinto como se estivessemos a beira de um lago, deitados na grama conversando, conversando, conversando, enquanto as nuvens desenhavam o mundo diante dos nossos olhos no céu.

 

E me sinto de mãos dadas contigo, sua mão quente na minha, seus dedos acariciando os meus de leve, com carinho, ternura e eu fazendo a mesma coisa com você..

 

E, de vez em quando eu choraria de emoção, como já estou quase chorando agora, e nos olharíamos nos olhos por horas e conversaríamos por eles, com nossas almas sintonizadas e unificadas e saberíamos o que cada um estava dizendo, sem palavras, e sentiríamos a emoção do momento percorrendo nosso sangue, nossas veias, entranhas, nutrindo todo nosso corpo de amor e paixão...

 

E nos beijaríamos com os olhos e então você estenderia sua mão e tocaria meus cabelos, bem de mansinho, bem de leve, aternurado, com aquele teu olhar meigo e sentimental e me diria: eu te amo. E eu olharia em tuas profundezas e, meio engasgada, destrambelhada com as palavras, diria: eu também te amo. E então nos beijaríamos com nossas bocas sedentas... e saberíamos que estávamos tocando o céu com as mãos, que podíamos rolar nas nuvens que antes contávamos, que estávamos livres de tudo, de todos, sendo só nós mesmos, naquele instante histórico, mágico, de todo nosso caminhar juntos...

 

E saberíamos que podemos nos amar onde estivermos, como sonhamos... sem medo, sem medo de nós mesmos, eu, principalmente, sem medo de ser quem eu sou, que sou a parte que você conhece - meiga, carinhosa, doce, querida, amorosa, acolhedora, de abraçar, tocar, estar junto, perto, mas também sou cheia de diabruras - escondidas do mundo, mas já relevadas a você.

 

E essas, elas, quando surgirem... sabe? Entendes? Você me entende? Ou subentende? Não sei como falar...

 

Eu sou uma criança ainda, que tudo que está vivendo é novo. Sei que deves estar te perguntando: como pode isso? Pode. Você sabe que venho de um mundo que foi me moldando, não sabe? Fui criando uma casca sobre a lava vulcânica do amor, da paixão, de todos os sentimentos para que eles não saíssem de forma "descontrolada".

 

Depois teve um período da minha vida que deixei aflorar mais essa Maria. Mas com o tempo tudo foi "calcificando" numa rotina que eu acabei me "encasulando", me fechando numa "concha" por anos e anos. Até que te encontrei.

 

Você lembra como eu era no início. Então, aos poucos eu tentei, tentei, tentei muito mudar, me libertar. Mas era muito difícil. Então, quando você partiu a primeira vez eu tentei, tentei - acho que avancei, mas sozinha não conseguia me livrar da prisão. Depois você voltou rapidamente e partiu outra vez.

 

Foi neste tempo longo que eu procurei com mais afinco mudar. E fui, dia após dia desatando um nó, uma corda, abrindo um cadeado. E então eu me vi como de fato era. Meu Deus! Como eu consegui sobreviver? Como eu não morri ali, amarrada, presa, amordaçada por tanto e tanto tempo de minha vida? Eu avancei, eu acho. Mas era difícil. Eu conheci pessoas maravilhosas que me ajudaram a pensar em mim.

 

Mas, foi quando eu morri e voltei, que eu percebi que, apesar de todo crescimento, amadurecimento, um dia - e pode ser hoje ou amanhã - eu partiria deste mundo sem ter sido eu por completo. Quando eu voltei, a vida passou a ter outro prisma, outras cores. E eu me vi de outro lado. Eu me via de dentro pra fora e não mais de fora pra dentro. E eu reconheci que vinha fazendo isso desde que achei o Sol em minha vida. Mas que era tão lentamente.

 

Várias vezes pensei: foi por isso que ele se afastou de mim, criou essa distância. Ele via que você não era você.

 

Eu, todos os dias da minha vida eu penso em você. Não tem um que não fiz uma oração aos céus para te proteger, guardar. E tudo o que eu faço é pensando: o que será que ele iria dizer? Como ele faria?

 

Minha vida foi sendo desenhada a partir de ti. Porque você me salvou da morte e eu sabia que não pertencia mais a mim, mas a ti. E por isso eu também sabia que precisava ser eu, porque você era a única pessoa que ia entender, aceitar e me amar como eu era.

 

Então eu comecei me libertando de coisas materiais. Fiz caixas e caixas de coisas e me libertei. Cada uma delas tinha um significado no meu passado, na minha história, mas eu via que me prendiam a uma Maria que eu ainda não era. A uma Maria que eu não queria mais ser. E como pra mim tudo é simbólico, tudo tem de ser expresso na realidade concreta eu precisava fazer esse gesto de libertação ser materializado e não apenas nos pensamentos.

 

Sou assim com as coisas. Já falei dos meus chinelos. Eles estão lá, enfileirados, e os visto de acordo com os sentimentos do dia, com as vivências, se preciso de um abraço, se preciso de um carinho, de um aconchego, de meus pés protegidos. É assim com as meias, com as cores... com as estações... e com as Marias...

 

E eu fui cortando os fios, me desenrolando da dor, das coisas que me prendiam à gaiola. E aquele dia primeiro que tivemos juntos... eu fechava os olhos, porque é mais fácil sabe? De ser eu... porque ainda tenho de aprender a ser eu de olhos abertos, olhando pra você. Eu sei que você me vê e sabe tudo, sabe como sou de verdade e vê isso em meus olhos. Mas EU estou me descobrindo mais uma vez. Me despetalando, me despindo, me deixando despir, tocar, amar...

 

Com você eu tenho liberdades de mim mesma que nunca tive antes... E eu gosto dessa Maria porque é ela que sou. É esse fogo ardente que me queima que eu sempre joguei água em cima que eu sou. É essa tempestade. Os extremos das emoções.

 

Emoções que eu sempre tentei controlar, que canalizava pra ações, brigas em que precisava lutar por alguém, por alguma coisa. Nunca por mim. Com você eu me sinto bem. Me sinto forte, me sinto bonita, me sinto amada. Até tenho olhado com mais atenção meus olhos no espelho, tenho sorrido pra mim mesma ao escovar os dentes.

 

Eu nunca tive curiosidade de me olhar como tenho agora. Eu mal paro na frente de um espelho pra ajeitar o cabelo. Por isso, estou sempre destrambelhada. Mas eu também me gosto assim. Sou mesmo simples, simples.

 

Mas tenho olhado meus olhos ultimamente. E sabe o que vejo? Você. Você brilha dentro deles. Brilha intensamente. E o seu brilho deu uma nova nuance de vida ao meu olhar. Eu me olho, te vejo, e meigamente te amo e assim me amo, me gosto.

 

E também me olho com a curiosidade de ver o que você faz em mim. Por isso faço as fotos. Porque é o único jeito de me ver como tu me vê naquele momento. E eu me gosto assim também. Não me reconheço direito, mas sei que sou eu. Eu sou assim. Eu sou aquela. Bem aquela. É aquela que eu sou. Aquela que eu sou com você sou eu. Você entende? E você me aceita assim? Essa multidão de Marias dentro de mim brigando pra vir à tona... com medo de que te assustes, com medo de me perder em ti pra sempre e não voltar mais pra mim.

 

Na verdade já fiz isso há milênios. Por isso eu imagino que essa Maria é você. Você é assim também. Esse fogo, essas labaredas que não se extinguem.

 

Eu sempre vi você assim nas entrelinhas da tua poesia, nas palavras inusitadas. mas, quando eu falava com elas, eu "amenizada" tudo. E foi onde aprendi a falar diabruras com palavras amenas... porque eu tinha medo que: e se eu estivesse enganada, se você não fosse assim? Aí mesmo que eu ia te perder.

 

Nosso amor é tão lindo, tão extraordinário. Amor de anos e anos. E eu penso em tudo que a gente viveu e vive e que a vida nos deu, a vida nos presenteou.

 

Eu sei que estou rodando rodando, rodando para falar. Mas é que faz tempo que não te escrevo uma carta e era uma forma que eu tinha de falar contigo, de dizer o que pensava, vivia, o que estava acontecendo. Não tenho feito porque me sinto perdida com seu silêncio - que hoje se calou. Falou sem falar. Sabe?

 

E por isso desta carta. Pra falar do jeito que te falava no passado. Pra dizer que és muito amado, mesmo que não saibas que "isto significa" nada. E que o nada que nos habita é o tudo que somos. E somos o nosso amor, somos a nossa linda história de amor e vida. Nossos sonhos de poder falar, expressar nossos sentimentos do jeito que mais sabemos fazer, com palavras que nos surgem do profundo da alma, do recôndito mais escondido, puro e sagrado de nosso coração.

 

É neles, em nossos sagrados, que nos reconhecemos, que nos vemos, que nos completamos e, completos, nos amamos.

 

Eu te amo:

eu também te amo.

 

Vou indo.

Depois eu volto.

 

Se cuida.

Beijos.

Da Marie.

 

Dezembro de 1989. 

Maria
Enviado por Maria em 10/12/2022
Alterado em 08/12/2023
Comentários