Maria
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A Voz ao Telefone
Não lembro mais seu nome mas recordo do dia em que ele chegou e preencheu o cadastro sem me olhar.

Sentou-se à escrivaninha em minha frente, tomou da caneta e foi escrevendo enquanto balbuciava algumas frases. Falava calmo e baixo. Não lembro mais o que disse e nem sei se o escutava de fato, tão diferente era sua atitude de não me olhar.

Espantei-me com sua desenvoltura ao falar sobre o lugar e seu encanto em poder estar ali para o conhecer. Parecia que já havia vivido por aqueles recantos há muito tempo. E que conhecia a história e as belezas, que tanto me encantavam, em profundidade.

Encaminhei-o ao seu apartamento na Ala dos Pássaros e depois daquele dia o via sempre às refeições da manhã. Espiava por detrás do compartimento da garçonete que o servia. Era alto e belo. Silencioso e sozinho parecia um rei sentado à mesa do café.

Durante o dia não o via, pois minhas horas se passavam na recepção do hotel. Via-o, outra vez por ocasião do almoço e jantar. Ele era sempre pontual. Chegava no mesmo horário. Quase sempre um livro em sua mão.

Um dia, ao caminhar para casa encontrei-o no caminho de terra e araucárias vindo em direção ao refeitório nº1 do restaurante. Às 13 horas, quando eu voltava para o meio turno da tarde, o encontrei sentado no banco ao lado da estrada em que eu passava, olhando os esquilos que ali comiam as nozes deixadas pelos hóspedes no jardim. Passei e ele me olhou silencioso e de longe. Quis cumprimentá-lo com a mão, mas ele já havia baixado os olhos para o livro que segurava na mão.

E os dias (que não lembro mais quantos foram) passaram lentamente. Ele cada dia ficava mais tempo no jardim em frente ao prédio central - onde eu trabalhava. Era tempo de papoulas vermelhas no coração em frente ao prédio e, muitas vezes, o via lá, olhando as belas flores e as fotografando. Depois o via sempre pensativo e sozinho pelos paralelepípedos da entrada ou nas mesas de pedra nas estradinhas da floresta de araucárias e carvalhos (eu ia espiá-lo, curiosa, das janelas laterais do hotel).

Uma manhã ele chegou com sua mala à recepção.

- Vim fechar a conta, disse-me. Calculei a hospedagem, ele fez o acerto e pediu se poderia deixar a mala comigo na recepção enquanto fazia um último passeio pelo local. Dito isso, saiu sem que eu pudesse ter respondido sim.

Fiquei ali, olhando a mala, enquanto me perguntava do porque não a guardou em seu carro estacionado em frente ao hotel. Horas depois retornou para o almoço. Fui, outra vez, espiá-lo enquanto almoçava, silencioso, observando o espaço ao redor. Será que me via? eu me perguntava tímida e encabulada. Não podia imaginar.

Sua forma de observar me tocava. Parecia que queria registrar o lugar em sua retina, em seu pulsar do coração. Observei que parecia ter um certo brilho no olhar e que, dessa vez, ao fechar a conta, havia me olhado nos olhos. Lembrei-me de uma noite (eu fazia meu terceiro turno de trabalho na recepção das 19 às 21:30 horas) em que meu chefe o havia convidado para um chá no espaço do refeitório onde havia uma lareira e que ali havia ouvido, várias vezes, sua voz melodiosa, mesmo que não compreendia o que falava.

Antes de ir, ele veio à recepção buscar sua mala. Eu já não devia mais estar ali. Meu primeiro turno se encerrava às 12 horas para que pudesse ir para minha casa (um sótão de uma antiga casa) que ficava na estradinha logo ao lado do hotel para retornar às 13 horas em meu segundo turno de trabalho. Naquele dia, por causa da mala (só por causa da mala) havia ficado direto no trabalho. E... ele veio buscá-la.

Despediu-se, falando como havia sido importante ter estado ali e como iria sentir saudades do lugar. Falava manso e baixo, olhando em meus olhos. Estendeu a mão e eu, sem jeito - tímida - a toquei. Fiquei encabulada (eu sou) e ele percebeu, puxou a mão, pegou sua mala e foi em direção ao carro. Fiquei olhando-o da recepção. O vi sumir de minha visão. Ouvi o barulho do motor e o carro se distanciando. Ele havia partido.

Alguns dias depois o telefone tocou. Era ele agradecendo, mais uma vez, a estadia num lugar encantado. Parecia alegre e falava manso e baixo... Despediu-se dizendo que um dia voltaria ali para um outro tempo de renovação.

Relatei o telefonema ao gerente. Com surpresa ouvi-o dizer:

- Maria, não te falei antes para não te encabular e para que não tratasse o hóspede de forma diferente ou dele se escondesse, mas uma noite ele me contou um pouco de sua vida e falou de você. Relatou estar passando um momento difícil de profunda depressão e que seu médico o havia incentivado a ir por uns tempos para um lugar de paz para buscar forças para viver. Entre tantos que pesquisou escolheu o Lar. E o que o motivou a vir foi a voz da menina que o atendeu ao telefone e lhe falou dos encantos, da magia e da paz que reinava no lugar. Ficou fascinado por tua voz e pela paz que ela transmitia e foi o que o incentivou a vir até aqui e que esse estar aqui havia mudado a sua vida!

Emocionei-me com o relato. Nunca mais o vi, nem dele soube. Também não lembro seu nome. Mas seu olhar profundo fitando os meus ao se despedir, se encontram até hoje em minha memória! 

* Vivência de 1991 quando era recepcionista e atendente de telefone num hotel em Mato Preto, São Bento do Sul, SC.
Maria
Enviado por Maria em 20/06/2023
Alterado em 20/06/2023
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