Quando você se encontra outra vez no limiar entre a vida e a morte, tudo que te rodeia desaparece e só importam as pessoas que você ama e te amam e o que você é dentro de você. Nem o invólucro, a casca, o casulo em que tua alma e coração dentro se acolhem tem mais sentido.
Então você pede que a travessia te seja de paz, fecha os olhos e deixa o mundo ir se distanciando aos poucos. É uma viagem para a qual todos nós já temos passaporte. É uma viagem sem volta, uma jornada que iniciamos ao nascer. E a cada passo dado adiante é um passo e, talvez, um rastro que ficou para trás. É uma história que ficou, uma vivência, amigos, amores, perdas e conquistas que ficaram no passado.
Podemos trazer esse passado todos os dias para cima do tampo da mesa. Podemos mudar tudo de lugar, priorizar um dia um espaço, noutro outro fato ou pessoa que dele fizeram parte... e nada vai mudar: é o passado que não pode mais ser mudado.
Podemos nos esconder dentro de uma garrafa atrás de nossas parafernálias da vida, podemos dispor a ordem cotidianamente sobre a mesa para fins de fazer concreto, visível, para nós (mas também para os outros que convivem conosco descobrirem que ainda não são o horizonte do branco caminho e nem prioridade) o que ainda, de fato, importa em nossa vida. Podemos nos agarrar a pessoas que já não vivem mais, podemos nos amarrar àquelas que já partiram ou que deixamos várias vezes ao longo de anos, mas sempre voltamos para elas, sempre... e com elas é que sempre, de novo e outra vez de fato, no presente, estamos...
Podemos viver de dois lados da vida a nossa própria história. De um lado do espelho quem e com quem somos e estamos (Um lar com um Mar e um Farol à frente da janela e uma Deusa dentro dele), do outro lado do espelho, quem somos de verdade (e só o espelho sabe) e com quem sonhamos (ainda e sempre uma tênue neblina enevoada nos envolvendo num abraço como a névoa abraça a montanha que sopra ventos e a dissipa para que vá para longe de si) para a eternidade ser e viver.
Podemos misturar tudo sobre a mesa, nossas xícaras de canyons profundos que, mesmo vazias, ainda representam tanto que não avançamos ou não fazemos escolhas que sonhamos por causa dela. Ou que ali ficam vazias, mas em miniatura são usadas em doses pequenas e esporádicas de café, amor, paixão, evidenciando a importância, a relevância dela em nossa vida para cada dia quando todos os dias, nos mesmos horários, teclamos furiosamente enquanto o som da chegada das mensagens atravessam as paredes do tempo e desafiam um coração de amor.
Podemos misturar tudo e trocar de lugar, a ordem, a simetria, mas, no entanto, está tudo lá, misturado, embutido e explicita que ainda não estamos prontos para fazer a escolha certa, que precisamos de mais tempo... e, principalmente que, cada dia nos grita que, talvez, talvez, não dê mais tempo porque... o tempo...
Ah, o tempo! Esse, que não para, que passa lépido e vai devorando nossa vida, uma mordida daqui, outra dali e vai arrancando um pedaço de nós a cada dia. E nosso futuro vai ficando pequeno diante do passado que vamos deixando pra trás e se torna cada dia maior...
No entanto, nenhum um, nem outro nós temos. Só temos o hoje e ele é tão efêmero... e é nele que vivemos... e no presente não optamos pelo nosso sonho, não fazemos nada para tornar o sonho, a utopia um objetivo e a realidade a ser vivida.
Então... o que temos no presente? Um momento fugas e efêmero pra ser vivido. E nele, dentro dele, quando pisamos mais uma vez o limiar entre a vida e a morte como pisei ontem à noite, quando nos deparamos com a fronteira entre o presente e a eternidade nós nos damos conta que, naquele instante único, imenso, intenso, estamos sozinhos no universo de luzes.
E é um estranho no uber, ou outro no hospital, que se encontra ao teu lado segurando a tua mão, enquanto você chora de medo de fazer a travessia no momento sozinho e mais importante da tua vida... é um estranho que te deseja forças para lutar, para não se deixar levar... que fica ao teu lado te olhando, enquanto você adormece dopada, para ver se teus olhos ainda tem chance de se abrir mais uma vez...
Quando você pisa o limiar entre a vida e a morte é quando você lembra das pessoas que ama e que você sabe que te amam e descobre que precisa dizer-lhes, naquele momento, que estás pensando nelas, que se ouvirem de sua partida, saibam que naquele exato momento teu coração estava abraçado, entrelaçado ao delas... amando-a intensa e profundamente em sua hora derradeira...
Então, telepaticamente, você envia uma foto de seus olhos, uma frase, um telegrama... (que não veio de volta com um beijo, um abraço, um carinho, amor - mas com atraso temporal de milênios, espanto e um débil desejo de melhoras) para que, se no dia seguinte estiverem defronte ao teu esquife saibam que, no teu derradeiro momento, teu pensamento e teu coração eram só daquela pessoa que você pensou no último milésimo de segundo da tua vida...
Quando você se defronta mais uma vez, com a fronteira, o limiar entre a vida e a morte...