Era o ano de 1995. Morava no Rio Grande do Sul, mas estava em Pomerode, SC, participando de um retiro espiritual com um terapeuta, psicanalista alemão. O local onde o grupo se encontrava em retiro era belíssimo, flores, árvores, as instalações muito lindas.
O grupo chegou de várias cidades num domingo. Em torno de umas 20 pessoas. Ficamos instalados em quartos de duas pessoas e na segunda-feira já iniciaram as atividades programadas para a semana. Fazíamos todas as refeições juntos e eu, como fazia parte da equipe de organização, vivia correndo de lá para cá atendendo palestrante, seu tradutor e participantes, possibilitando que tudo ocorresse de forma maravilhosa para todos.
Cada dia havia uma temática diferente e o psicanalista trabalhava com pequenas explanações seguidas de rodas de conversa.
No primeiro dia o tema era Eu e você. Ele explanou sobre, dialogamos e no período da tarde ele entregou grandes pedaços de papel manteiga (bem liso de um lado) e pediu que desenhássemos com tinta de pintura a dedo o tema.
Eu desenhei a mim mesma com um vestido (raramente uso hoje, mas usava muito no passado). O desenho era aquele básico, um vestido, braços, pernas, pescoço e cabeça. Ao lado desenhei o Outro que representava então meu cônjuge. Desenhei uma floresta e atrás dela um céu muito azul.
Ao olhar o meu desenho percebi as cores. Eu havia pintando meu então esposo de azul da cor do céu e havia me pintado toda de preto. Então decidi colocar outras cores em mim e repintei-me de amarelo. Mas... acabei borrando todo o desenho e acabei ficando com aquela aparência de fotografia fora de foco.
Após, conversamos sobre os desenhos. Eles eram colocados no chão, no meio da roda e cada membro dos grupos (fomos separados em grupos pequenos) falava do seu desenho.
Ele fazia perguntas e quando chegou a minha vez pediu que eu falasse porque havia pintando meu então cônjuge de azul da cor do céu. Eu respondi que pensava nele como um pedaço de céu porque ele amava muito as pessoas e trabalhava por elas, tornando-se, muitas vezes, em céu na vida delas.
Então ele me perguntou porque eu estava toda borrada, desfocada. Eu respondi que era porque havia me pintado inteirinha de preto e depois quis colocar um amarelo por cima, mas que não deu certo e fiquei toda assim, lambuzada de tintas, desfocada a tal ponto que não parecia uma pessoa, mas uma pedra. Ele ouviu e ficou pensando um tempo e então perguntou:
- Você se sente um pedra?
Eu fiquei muda e em seguida comecei a chorar. Não consegui falar nada e ele não perguntou mais. Seguiu falando com os outros. Ao final disse a cada um uma palavra e me disse que eu não era uma pedra. Que ele me via diferente de uma pedra. E me perguntou o que eu gostaria de ser se eu pudesse escolher não ser pedra. Respondi:
- Uma flor!
No dia seguinte o tema era grupo e eu pensei: vou tomar todo o cuidado pra não fazer céu, nem nada. E fiquei tempo pensando como desenhar com a ponta dos dedos um grupo. Olhava os demais e desenhavam correntes com elos ligados, pessoas todas de mãos dadas. Eu queria fugir de tudo isso.
De repente tive uma ideia: uma roda de bicicleta podia bem representar um grupo. Tinha o centro, os aros, o pneu. Um grupo perfeito.
Com medo de desenhar algo que ele ficasse perguntando decidi desenhar a roda bem no centro do papel. E fiz uma roda de bicicleta bem vermelha. Olhando achei que a roda era muito sozinha e fiz várias outras. Ao final enchi o papel de rodas de bicicleta grandes e pequenas.
Feliz que não tinha céu, nem terra, nem nuvens, nem árvores nem nada, fiquei tranquila me dizendo: agora ele não vai te pegar com uma pergunta capciosa. Fizeste uma linda roda de bicicleta bem vermelha (não era azul da cor do céu) e a replicaste no papel pra significar vários grupos.
Quando chegou minha vez ele perguntou o que era o desenho e fui falando. Ele ouvindo o que eu entendia por grupo. Por fim me perguntou:
- Te parece que estás olhando para uma roda de bicicleta?
- Sim, eu respondi. Para várias.
Ele pediu que eu fechasse um pouco os olhos e olhasse para o meu desenho assim. Após um longo tempo onde achei que eu ia parar de respirar ele me perguntou:
- Ainda vês uma roda de bicicleta?
- Não, eu respondi.
- O que você vê?
- Uma flor! E as lágrimas começaram a escorrer dos olhos.
No terceiro dia tivemos apenas momentos de interação, com brincadeiras, cafés etc. Eu, sempre correndo de um lado para o outro atendendo todo mundo, cozinha, vendo banheiros, mesas...
No quarto dia o tema era um dependente químico ou uma pessoa doente chegando a lugar de ajuda, cura, recuperação.
Eu pensei... aham, agora ele não vai me pegar. Caprichei no desenho.
Fiz um caminho que dava para um portal. Na ponta de lá uma casa gigante, um céu azul com nuvens, sol por detrás, árvores. Escrevi com letras gigantes no telhado: uma oportunidade de vida. Coloquei um murinho ao lado esquerdo do caminho.
Na ponta de cá desenhei um casal de mãos dadas adentrando o portal. Fiz ele e ela de verde para não ser pega naquela coisa de pedaço de céu. Olhei e olhei e não vi nenhuma flor. Mas aí pensei... Maria, na entrada que tu conhece tem papoulas vermelhas no murinho do lado esquerdo. Decidi fazer as flores porque ela não iria me pegar com as flores ficando procurando elas no desenho. Já estariam lá. Elas estavam bem ao largo do caminho.
Feliz com meu desenho e certa de que naquele dia eu não seria pega com uma pergunta enganadora fiquei tranquila esperando minha vez.
Ele olhou, olhou, perguntou o que queria dizer e respondi que era o dependente químico, com sua cônjuge chegando no centro de recuperação. Ele fez várias perguntas e por fim lascou:
- Se está escrito com letras gigantes no telhado da casa que lá é uma oportunidade de vida, por que os pés do senhor e da senhora que você desenhou estão voltados para as flores vermelhas ao largo da beira do caminho?
Eu fiquei em choque. Olhei para os pés dos meus desenhos e de fato, olhando de longe pareciam voltados para as flores. Não sabia o que dizer, chorei... solucei... Ele acolheu o meu choro e seguiu conversando com os demais.
No quarto dia não tinha desenhos para fazer. Sentamos todos num grupo para uma roda de conversa. Ele ia fazendo perguntas e cada um falava. Todas eram ligadas aos desenhos que havíamos feito. Então era minha vez de falar.
Ele me perguntou o que estava presente em todos os meus desenhos. Respondi:
- Uma flor.
Ele perguntou:
- Você me disse que se pudesse deixar de ser pedra você queria ser flor. E depois disso você só desenhou flores. Agora você se sente uma flor?
- Não.
- Como você se sente?
- Uma pedra.
Ele perguntou por que eu me sentia assim. Respondi:
- Acho que eu sou uma pedra.
- Por que?
- Um dia alguém me disse que eu era uma pedra.
- Como assim?
- Um dia um homem de Deus olhou para meu esposo e dizendo seu nome completou:
- ... Você achou uma pedra preciosa no meio do palheiro.
- E você não gostou do que ouviu? Não é um elogio bonito?
- Eu gostei na época, mas com o tempo a pedra foi ficando pesada pra mim carregar.
- Me fala mais sobre esse peso.
- Como se ela fosse um peso, um freio.
- Um freio?
- Sim...
- Pra ti mesma?
- Não. Para meu esposo.
- Como assim?
- Um freio nas quatro rodas do meu esposo. Ele tem muitos sonhos e eu fico com medo e fico travando, freando.
Conversamos muito sobre isso e em determinado momento voltamos para as flores.
Ele perguntou:
- O que as flores significam para você? Respondi:
- Amor!
Então ele perguntou:
- Não é verdade que você tem um profundo desejo de amar e ser amada?
Eu fiquei olhando para ele impactada. As lágrimas começaram a escorrer dos olhos. Ele me acolhei com uma mão na minha e me disse;
- Se as flores representam Amor para você é assim que eu vejo você, como uma Flor!
Eu fiquei lá, soluçando. Ele me disse:
- Olha para sua camiseta o que você vê?
- Um desenho.
- O que tem neste desenho?
- Uma menina de tranças e vestido com a mão estendida.
- E o que ela tem na mão?
- Uma flor...
- Olha de novo. O que ela tem na mão?
- Uma flor...
- Olha mais uma vez. O que esta menina tem na mão e oferece para alguém?
Eu olhava, olhava e olhava e só via uma flor.
- Eu não sei. Eu só consigo ver uma flor.
Ele perguntou:
- E o que a flor é para você?
- Amor!
Então ele me disse:
- É assim que eu vi você essa semana toda aqui. Enquanto todos sentavam e conversavam você corria de um lado para o outro preparando tudo, organizando, arrumando. Sorria pra um, abraçava o outro, acarinhava, dava forças.
Eu te observei a semana toda e não vi uma pedra que é um freio nas quatro rodas de alguém. Eu só vi uma Flor oferecendo Amor!
* Guardo a camiseta - já amarelada pelo tempo e roída de traças, até hoje.