Maria
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Alguém que nos ouça

Ontem viajei para Alto Benedito buscar meu filho na casa de amigos que estavam se despedindo do trabalho numa igreja naquela localidade para uma cidade do interior do Paraná. Meu filho e outro amigo - em comum com o casal e comigo - foram ficar alguns dias com eles, pois se conhecem da adolescência ainda.

Quando retornávamos à Blumenau combinei com eles passar em uma sorveteria em Timbó. No caminho estávamos escolhendo entre The Best ou Bonatti. Decidimos pela The Best e seguimos viagem.

Já nos arredores de Timbó, antes de uma curva da estrada, um lugar lindo. Do lado direito o rio, árvores e flores no canteiro ao largo do estacionamento da estrada. No lado esquerdo uma sorveteria. Meu filho imediatamente estacionou e disse:

- Vai ser aqui. Esta sorveteria parece ser daquelas "Raiz" que a gente gosta.

Lembro que eu olhei o nome da sorveteria, Kifredo e reparei que era um espaço grande, simples, mas bem limpo e bonito e que haviam apenas duas senhoras tomando sorvete no local. Atrás do balcão um homem solitário.

Fomos direto para nos servir e decidi comer na casquinha.

- É mais "raiz" ainda, comentei com meu filho.

Então vi o sorvete de ameixas pretas com rum... amo demais. Mas tinha só uma rapinha lá no fundo. Decido pegar o restinho e colocar sobre a minha bolinha de brigadeiro.

Vi que estava meio que derretendo e meu filho me disse que ia perder todo o sorvete até chegar no caixa.

Eu gritei "eu sei" enquanto corria com o sorvete nas mãos em direção ao balcão explicando para o senhor que sabia que estava escorrendo, mas que não podia deixar de comer porque era a última rapinha do pote e eu amava esse sorvete que não e tão fácil de achar nas sorveterias com a aquela aparência e textura...

Então ele pediu para colocar na balança e, após pesar, enquanto eu já começava a devorar o sorvete que pingava no chão foi buscar panos para limpar a balança e o chão. Enquanto ele limpava e eu "devorava" rapidamente o meu sorvete ele me disse:

- Você está comendo o último sorvete de ameixa com rum que a Sandra fez. Não será mais resposto. Acabamos com a produção e vamos fechar neste final de ano.

Eu ouvi e falei para meu filho que estava chegando com o pote de sorvete dele:

- Filho, estou tomando o último sorvete de rum da sorveteria. Esse sorvete não será mais produzido.

O Senhor me interrompeu e disse:

- Nenhum será mais produzido, vamos fechar a sorveteria.

Não sei bem como foi, meu filho parou para conversar com ele enquanto tirava o cartão para pagar e eu disse:

- Espera, deixa eu ir lá pegar mais uma casquinha.

Ao retornar, meu filho já tinha ido para a mesa onde o amigo estava. Deixou lá seu sorvete e retornou para pagar a minha conta.

Mas... era tarde para pagar e sair. O senhor do balcão já estava com os olhos cheios de lágrimas relatando para mim com a voz embargada que sua esposa havia falecido recentemente de câncer.

E assim ficamos ali os dois ouvindo o choro e vendo as lágrimas do Seu José enquanto nos contava que ela descobriu o câncer quando começou a sentir enjoos e azia e muita dor na barriga. O médico solicitou exames de sangue e um ultrassom. Ela fez os exames de sangue com resultado todo alterado e ao fazer o ultrassom e lá estava um tumor gigante. Três semanas depois de o descobrir ela faleceu.

Nós o ouvíamos, eu impactada, lágrimas nos olhos.

Então relatou o último dia com ela. Trabalhou o dia todo fazendo sorvete. Fez o pote de ameixa com rum naquele dia (há três meses atrás). Naquele dia também passou todas as senhas de contas e e-mail para o filho. E, ao final do dia falou feliz:

- Missão cumprida!

Relatou que sentaram para conversar - havia uma sala de estar ali perto do balcão - e ela estava muito feliz por ter conseguido terminar todos os sorvetes para a temporada de verão.

Então, naquela noite, ela partiu. Em silêncio ela partiu.

Ele chorava e relatava que uma semana depois estava marcado o casamento do filho e eles decidiram fazer porque sabiam que era isso que ela ia querer. Contou soluçando que o filho entrou na igreja sozinho, nas mãos um balão escrito mãe. Que para ele, pai, foi um momento impactante, triste e ao mesmo tempo especial. O filho caminhando com a mãe no coração para o altar. Ao chegar lá ele soltou o balão (o casamento foi ao ar livre) e o balão subiu para o céu. Todos ficaram olhando emocionados.

Foi assim que se despediram de Sandra.

Seu José seguiu contando várias histórias e meu filho e eu lá ouvindo, enquanto o sorvete de meu filho derretia na mesa lá fora.

Contou que o filho estava nos Estados Unidos em viagem com a esposa e que ele estava lá, sozinho, esperando os sorvetes acabarem para fechar a sorveteria.

Eu falei que o que nos chamou a atenção da sorveteria foi o nome e a simplicidade do lugar: kifredo!

E disse que ainda comentamos que era uma sorveteria raiz - o que foi confirmado pelo caderno grande, de linhas, onde ele fazia as contas, a pequena calculadora de mão, os preços dos sorvetes escritos à mão numa folha de caderno e colados na vidraça do armário de doces...

Sobre no nome do lugar, ele nos disse que são descendentes de italianos e que bem no início quando ainda não tinham um nome fantasia para a sorveteria e ouviam as pessoas entrarem dizendo "kicalor", respondiam rindo e apontando para os freezer onde estão os potes de sorvete: "kifredo" (kifrio). Explicou que Fredo é a expressão italiana para dizer "frio". E foi assim que surgiu o nome.

Ficamos tempo conversando com o Seu José. Ele alternava choro e soluços com riso gratidão e alegria pelos tempos bons vividos com Sandra, pela filha e pelo filho - falou de seus perfis, como eram diferentes... e como os amava e que agora queria dedicar a vida para eles. Que eram muito unidos.

Falou que gostava muito de ajudar. Que anualmente trazia para a sorveteria os alunos da Apae - todos passavam uma tarde lá comendo sorvete. Que participa de campanhas de ajuda onde é chamado ou ouve falar e que vai continuar se dedicando a ajudar a comunidade.

Ao final ele disse que acreditava em Deus, que era católico praticante. Então eu lembrei de um versículo da bíblia que dizia "e não sabemos nós o que fazer, mas os nossos olhos estão postos em ti" (II Crônicas 12.20). Disse que esse versículo me ajudava muito quando eu precisava tomar decisões importantes.

Por fim, meu filho pediu se podia fazer uma oração pelo Seu José e seus filhos e ele disse que sim. Ali como estávamos oramos juntos. Ao final da oração ele chorava aos soluços novamente e por fim disse:

- Muito obrigado por me ouvirem, por este momento. Eu tenho certeza que um dia vamos nos rever de novo e eu vou chamar vocês de amigos.

Saímos dali emocionados. Meu filho meio que "bebeu o sorvete dele" e caminhamos em silêncio para o carro. Sempre que meu filho e eu ficamos em silêncio após algo é porque o processo de reflexão já iniciou. Dentro do carro eu falei:

- Entenderam por que nós "tivemos" de parar aqui?

- Sim, disse o amigo do meu filho, este homem precisava falar e de alguém para o ouvir.

Seguimos em silêncio os três... 

 

 

Maria
Enviado por Maria em 23/12/2024
Alterado em 23/12/2024
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