[Manuscrito encontrado entre os desenhos de Marie, datado de dezembro de 1889. Apenas uma frase escrita em letra menor no rodapé: “escrevi porque a alma não coube em silêncio”].
Soneto - A alma em Saint-Michel
Saint-Michel, 31 de dezembro de 1889.
Meu Joseph querido,
Esta será, talvez, a última carta. As marés levaram muitos nomes este ano - e entre eles, o teu.
Escrevo não porque espere resposta, mas porque calar seria naufragar.
Hoje, após o entardecer, quando o céu se tingia de cinza e cobre, as palavras me tomaram como um véu. Não vieram como prosa. Vieram como sopro, como lamento antigo.
Escrevi um poema. E nele deixei tudo o que me escapa.
A alma em Saint-Michel
Ficou no vento o rastro vosso, tremendo,
No tempo, a sombra mansa vos seguindo,
E uma saudade antiga em mim viceja,
Como oração sem voz que ainda deseja...
É névoa que persiste na saudade,
É sol que adentra em luz suave e plena.
Os montes se entrelaçam na verdade,
E a alma se aninha sob o véu da cena.
A alma envolta em sombra mística avança,
Às águas de Saint-Michel, entre neblinas,
Nas mãos, o coda exala a última dança.
Ali repousa a dor sem nome escrito,
E o tempo inclina a fronte, absorto e lento,
Num hino vão que morre ao som bendito.
Não sei se esta carta chegará a ti. Talvez seja lida por ninguém. Ou talvez apenas pelas pedras desta abadia que ainda sabem teus passos.
Mas se um dia - um só dia - voltares ao santuário onde tudo começou, que encontres este papel entre as páginas do tempo. E que saibas: ainda é em ti que minha alma repousa.
Com o amor de sempre,
Tua Marie.
Marie dobrou o papel lentamente. Ainda estava úmido de sal - do mar ou das lágrimas, já não sabia distinguir. Guardou-o entre as páginas do diário, como se fosse uma oração selada. E então, voltou à Abadia, onde cada pedra sabia seu nome.
Do Livro As Cartas de Saint-Michel de Maria Rossi