Maria
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Paris na Belle Époque e a transformação de Paris

 

O período da Belle Époque em Paris (1871-1914) foi uma época de transição e inovação, onde a capital francesa se tornou um símbolo de progresso, arte e cultura. Marie, uma jovem imersa nos estudos de arte e na busca por seu lugar no mundo, viveu esse momento único, em que Paris era, simultaneamente, a cidade mais rica e mais pobre da França. Naquela época a cidade passava por grandes transformações urbanas. Após a Comuna de Paris em 1871, Paris passou por um processo intenso de reconstrução.

 

A Comuna de Paris: um sopro revolucionário e a repressão brutal

 

A Comuna de Paris, instalada em março de 1871, foi a primeira experiência concreta de um governo popular, autogerido e operário, na história moderna. O povo parisiense - cansado da miséria, da desigualdade e da humilhação causada pela derrota da França na Guerra Franco-Prussiana - tomou o destino nas próprias mãos, declarando uma república popular autônoma, separada do governo central sediado em Versalhes. A cidade, que havia resistido heroicamente ao cerco prussiano e à fome durante o inverno de 1870-1871, não aceitou a rendição e a submissão ao novo governo de Thiers, que logo se aliaria à antiga aristocracia e aos interesses burgueses. O povo parisiense - artesãos, operários, mulheres, jornalistas, soldados da Guarda Nacional - formou então um novo tipo de governo: a Comuna.

 

Essa experiência inédita de poder popular propunha ideias radicais para a época como a separação entre Igreja e Estado, a igualdade entre homens e mulheres, a supressão do exército profissional e sua substituição por milícias populares, a autogestão nos bairros e locais de trabalho, a educação gratuita, laica e universal e a reforma urbana a favor da população pobre.

 

Muitas mulheres participaram ativamente da Comuna e uma delas, Louise Michel, também conhecida como a loba vermelha - em quem Marie também se inspirava-, se tornou símbolo da resistência revolucionária. Ambas compartilhavam esse passado de prisões políticas e de muralhas que guardam paralelos e silêncios profundos. Uma vivendo dentro delas para restaurar afrescos deixados pelos prisioneiros como legado e resistência nas paredes da prisão e outra sendo prisioneira em outra Abadia transformada em prisão na França como o fora Saint-Michel.

 

Louise Michel e o fogo da Comuna

 

Louise Michel, nascida em 1830, viveu naquela Paris em chamas, onde a esperança e a tragédia se entrelaçavam nos muros manchados de pólvora. Ali, nas colunas de luta ergueu-se uma mulher de olhar firme e coração ardente: Louise Michel. Filha de uma serviçal e do filho do patrão (um Lorde), nascera já entre dois mundos - o da opressão e o do privilégio -, e talvez por isso jamais se calaria diante da injustiça.

 

Professora por vocação, amante dos livros e das crianças, Louise recusou-se a jurar lealdade ao Império de Napoleão III. Por esse gesto de recusa e integridade, foi impedida de lecionar nas escolas estatais. Mas não se curvou. A sua pedagogia se estendia para além das salas formais: ela ensinava nas ruas, nos bairros operários, onde plantava as sementes de um pensamento livre e rebelde. Era uma blanquista, adepta do pensamento revolucionário de Auguste Blanqui, que acreditava que uma vanguarda decidida poderia, pela força, desencadear a revolução - uma ideia que ardia viva nas barricadas de 1871.

 

Louise não foi espectadora da Comuna de Paris. Foi sua combatente. Foi sua enfermeira. Foi sua bandeira. Literalmente: foi a primeira a erguer a bandeira negra, símbolo dos ideais libertários, que séculos depois seria adotada como estandarte do anarquismo. Entre os destroços da cidade e os sonhos ainda intactos no coração do povo, ela estava sempre à frente - cuidando dos feridos, escrevendo proclamações, enfrentando os canhões de Versalhes.

 

Após a queda da Comuna, Louise foi capturada. Levantou-se, no tribunal, com a mesma altivez de quem já sabia que pagaria caro por não se calar: “Já que, segundo vocês, todo coração sincero deve ser entregue ao pelotão de fuzilamento, eu reclamo o meu lugar... Se vocês me deixarem viver, não deixarei de gritar vingança!”

 

Foi chamada pela imprensa de Versalhes de ‘A Loba Vermelha, La Louve Rouge - título dado com desprezo, mas que ela vestiu como armadura. De fato, era loba: feroz, livre, solidária com a alcateia dos oprimidos. Também a chamavam de ‘a boa Louise’, como quem tenta disfarçar a força com doçura. Não sabiam que ela era ambas.

 

Antes de ser deportada para a Nova Caledônia, Louise passou vinte meses encarcerada na Abadia de Auberive, transformada em prisão - e não, não era a mesma Saint-Michel onde Marie se recolheu com suas saudades e seus silêncios. Auberive ficava na região de Champagne, cercada por bosques e esquecimento. Lá, entre as paredes frias e úmidas, Louise continuou a escrever, a pensar, a resistir. Onde outros definhavam, ela semeava ideias.

 

Foi ali, talvez, entre os vestígios do cárcere, que Marie encontrou um eco de si mesma. Em papéis resgatados das celas esquecidas da abadia, encontrou folhas amareladas pelo tempo, com versos firmes assinados apenas como Enjolras. O nome ressoava em sua memória como o de um personagem de luta e esperança - aquele jovem mártir da revolução descrito por Victor Hugo em Os Miseráveis. Mais tarde, descobriria que esse era o pseudônimo adotado por Louise Michel, a loba vermelha da Comuna, que ousara desafiar impérios e convenções.

 

Victor Hugo, que a admirava profundamente, chegou a escrever em sua defesa quando ela foi deportada, chamando-a de ‘heroína’ e ‘mulher de luz’. Os dois partilhavam algo mais profundo do que ideias políticas: partilhavam a fé inquebrantável na dignidade dos pobres, dos esquecidos, dos oprimidos. O romance Os Miseráveis, publicado em 1862, já havia encantado e incendiado uma geração inteira com a figura de Enjolras, o idealista que morre nas barricadas. Agora, na vida real, era Louise quem carregava seu nome como tocha.

 

Marie sentia, ao tocar aquelas páginas, que havia encontrado uma alma irmã - uma mulher que, como ela, resistira à dureza dos muros e às ausências da vida com a força indomável da palavra e do sonho. Talvez tenha lido o nome de Louise em algum jornal antigo, nas cartas que cruzavam Paris ou nas paredes sussurrantes da abadia. Talvez, ao saber que outra mulher, também enclausurada, escrevia para continuar livre, tenha se sentido menos sozinha. Pois algumas mulheres - como Louise Michel - fazem do cárcere apenas um espaço provisório para a alma que jamais se curva.

 

Trecho do diário de Marie sobre a Comuna de Paris

 

Abadia de Saint-Michel, inverno de 1889.

 

“Às vezes me pergunto quem escreverá, um dia, a história do silêncio. Porque a história oficial já conheço: ela estampa os rostos dos homens que fizeram revoluções, que ascenderam à glória ou caíram da guilhotina como mártires relutantes. Saint-Just, o anjo da morte, ainda será chamado de puro. Camille Desmoulins, mesmo hesitante, ainda será lembrado como quem atiçou o fogo da Bastilha. Mas e Louise? E as tantas como ela - de mãos feridas, saias encharcadas de sangue e olhos abertos para o impossível - quem as recordará? Foram elas que mantiveram os feridos vivos, as ideias acesas, os filhos alimentados, mesmo quando tudo ruía. Foram elas que, como a loba vermelha, lutaram com as palavras quando a pólvora faltava, e com os braços quando não restava mais esperança. Parece que, para a memória dos homens, uma mulher precisa morrer silenciosamente para ser santificada. Mas as que gritam, que sonham em praça pública, que escrevem sua própria história, viram ameaça. A mim, resta escrever. Registrar com mãos trêmulas o que não cabe nos livros da Academia: que a revolução tem rosto de mulher. E que, mesmo que o tempo as apague das moedas e dos monumentos, haverá sempre algum coração inquieto que se lembrará - em segredo, entre as páginas de um diário ou na solidão de uma cela - de que elas também foram o sopro da mudança. E eu, que nada sou senão testemunha e sombra, me inspiro nelas para não sucumbir”.

 

As mulheres que ousaram criar

 

Marie havia lido sobre Louise Michel, a loba vermelha da Comuna. E agora, diante da luz rarefeita da Abadia, ela pensava também em outra Louise - ou melhor, em outra mulher de olhar febril e dedos calejados pela beleza: Camille Claudel, nascida em 1864, que tanto a inspirava em seu estudo e trabalho.

 

Camille moldava o impossível no mármore. Esculpia com as mãos o que muitos homens não ousavam sequer imaginar. Era aluna, amante e prisioneira do mestre Rodin - que a admirava e a sabotava, que a desejava e a eclipsava. Como tantas, Camille foi chamada de louca por ver demais, por sentir demais, por esculpir demais. Internaram-na, silenciaram-na. E a história tratou de esquecer sua assinatura nas esculturas que, por vezes, ainda carregavam o traço de sua alma.

 

Louise e Camille. Tão distintas em vida, e, no entanto, irmãs no destino: punidas por pensarem alto demais. A primeira, por desafiar a ordem. A segunda, por criar uma beleza que feria os olhos da tradição. Marie compreendia o fio invisível que unia ambas - o mesmo que entrelaçava outras mulheres apagadas pela história.

 

Quantas foram deixadas às margens?

 

A cientista Marie Curie, nascida em 1867, cientista que Marie acompanhara a trajetória desde que dele se ouvira falar. Marie Curie, juntamente com seu marido Pierre Curie fez a descoberta do rádio e do polônio. Uma Marie que com seu brilho radioativo, só foi reconhecida porque teimou em continuar mesmo após a morte do marido, mesmo quando o corpo já carregava os efeitos invisíveis do que descobrira.

 

Na astronomia, Caroline Herschel (1750-1840), astrônoma alemã, que descobriu cometas e estrelas, mas teve seu nome frequentemente apagado sob a sombra do irmão.

 

Na medicina, quantas anônimas abriram corpos, cuidaram de doentes, escreveram tratados assinados por outros?

 

Na religião, Hildegard de Bingen (1098-1179), abadessa, mística, compositora e escritora medieval no século XII. Hildegard falava com visões e música celestial, mas era vigiada com temor pelos homens da Igreja.

 

Na filosofia, Hypatia de Alexandria (c. 350-415) - filósofa e matemática do Egito romano, mártir do saber. Despedaçada por ousar ensinar aos homens o cosmos.

 

Na sociologia, a própria Harriet Martineau (1802-1876) - escritora, socióloga e ativista britânica, considerada uma das fundadoras da sociologia, que escreveu sobre os direitos das mulheres e da classe trabalhadora antes mesmo que Marx fosse Marx - mas foi chamada apenas de ‘mulher de ideias fortes’, como se fosse um insulto.

 

Elas também olharam pela lente aberta das suas mentes brilhantes

 

Marie pensava nessas mulheres que atravessaram os séculos entre invisibilidades e resistências. Não apenas as que empunharam armas nas ruas de Paris como Louise Michel, mas também aquelas que, nas sombras dos grandes nomes, ajudaram a moldar o mundo - sem que o mundo soubesse.

 

A assistente de Niépce, que, segundo a história empírica, um dia, lavando placas de prata e manipulando produtos químicos, teve a intuição do processo que fixaria as imagens na fotografia - mas o nome que entrou nos manuais foi o do fotógrafo Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), considerado o inventor da fotografia moderna. Os relatos empíricos falam de que em sua casa havia uma mulher - talvez uma empregada, talvez uma aprendiz - que, enquanto lavava placas de prata e manipulava produtos químicos ao lado dele, intuiu um modo de fixar a imagem com mais permanência. Mas foi o nome do patrão que entrou para os manuais. Como ele, outros homens ganharam prestígio pelos avanços da fotografia:

 

Daguerre invento, em 1839, do daguerreótipo, o primeiro processo fotográfico amplamente utilizado. Foi parceiro de Joseph Nicéphore Niépce, mas após a morte de Niépce em 1833, Daguerre levou adiante os experimentos e registrou a invenção com seu próprio nome. O Estado francês comprou a patente e a declarou um presente para a humanidade - mas o nome lembrado foi o de Daguerre, não o de Niépce (e menos ainda o da assistente não nomeada).

 

William Henry Fox Talbot (1800-1877), cientista britânico e inventor do calótipo, um processo fotográfico negativo/positivo (1841), que permitia fazer várias cópias de uma imagem - diferente do daguerreótipo, que era único. Considerado um dos pais da fotografia moderna, seu trabalho foi fundamental para o avanço da fotografia como meio reprodutível e artístico.

 

Muitos homens levavam créditos pelas suas descobertas enquanto as mulheres ficavam no anonimato e, pior, muitas vezes tinham suas ‘teses’, suas ‘descobertas’ creditadas aos homens que as acompanhavam nos estudos somente pelo fato de serem mulheres. Marie pensava nesses nomes masculinos que estamparam as enciclopédias, enquanto os gestos femininos permaneceram como marcas d’água na história - visíveis apenas aos olhos atentos.

 

Nem todas, porém, se apagaram. Em 1843, Anna Atkins (1799-1871), botânica e fotógrafa inglesa, publicou o primeiro livro ilustrado exclusivamente com imagens fotográficas - delicadas cianotipias de algas e plantas entre 1843 e1853. Considerada a primeira fotógrafa da história, foi ela quem provou que a ciência e a arte cabem também nas mãos femininas. Mas seu nome, como o de tantas, ainda habita rodapés e notas de rodapé. Os holofotes preferiram mirar os inventores.

 

Marie sabia que aquilo se repetia em todas as artes. Como com Camille Claudel (1864-1943), escultora genial e apaixonada, cuja obra foi por muito tempo atribuída a Rodin - seu mestre, seu amante, seu eclipse. Camille ousou ter um estilo próprio, ousou ser mulher e artista numa época em que ser ambas era quase heresia. Pagou com a sanidade, com o silêncio, com o confinamento.

 

Na medicina, na astronomia, na filosofia, na religião... tantas outras como elas: mulheres que ousaram pensar, criar, questionar - e foram marginalizadas, desacreditadas ou esquecidas. E mesmo quando venciam, havia sempre um homem na linha de frente, recebendo os louros por uma caminhada feita lado a lado.

 

Mas as trilhas que Marie percorria com os olhos do coração não terminavam ali. Havia outras mulheres, em outros tempos, que também ousaram - e por isso foram esquecidas, apagadas, postas à sombra de nomes masculinos.

 

Ela pensava em Ada Lovelace (1815–1852), matemática visionária que, ao traduzir e comentar os estudos sobre a máquina de Babbage, criou o primeiro algoritmo da história - décadas antes da invenção dos computadores. Foi ela quem, com mente precisa e imaginação fértil, viu que as máquinas poderiam um dia fazer mais do que apenas cálculos. E, ainda assim, foi chamada de excêntrica, de sonhadora, enquanto os louros da invenção recaíam sobre os homens.

 

Lembrava-se também de Sophie Germain (1776-1831), que enfrentou o preconceito da ciência com a coragem do intelecto. Sem poder frequentar aulas por ser mulher, escrevia sob pseudônimo masculino para que seus trabalhos fossem lidos. Suas contribuições à teoria dos números e à elasticidade pavimentaram caminhos que outros seguiriam, muitas vezes sem saber que pisavam sobre ideias forjadas na solidão de um quarto iluminado a lamparina.

 

E pensava ainda em Florence Nightingale (1820), que transformou o cuidado em ciência. Na Guerra da Crimeia, enquanto os homens duelavam pelo mapa da Europa, ela percorria corredores de hospitais, reformando estatísticas e salvando vidas com métodos tão rigorosos quanto seu amor pela humanidade. Criou a enfermagem moderna, não com glórias ou condecorações, mas com noites insones, planilhas e paciência.

 

Essas mulheres também estavam com Marie - não nos retratos pendurados nas academias, mas nas entrelinhas da história, nas frestas do tempo. Eram como raízes invisíveis sustentando a árvore de seu próprio crescimento.

 

Marie escrevia para lembrar. Para iluminar os nomes que o mundo tentou apagar. Achava profundamente justo e poderoso que essas mulheres também tivessem seu lugar nas páginas de seu Diário, como faróis silenciosos de sua travessia por Saint-Michel. Cada citação em seu diário era uma forma de resgate. De resistência. De amor. Pois quando uma mulher nomeia outra, ela não a invoca apenas - ela a salva.

 

Era por isso que Marie, sozinha diante do mar, sentia-se irmã dessas mulheres. Porque sabia o que era fazer parte de algo grande, mas ser citada apenas em cartas. Sabia o que era criar com as mãos e com o coração, e depois ter de assistir em silêncio os nomes dos homens ocupando os livros e os marcos de pedra.

 

Mas ali, entre as paredes antigas de Saint-Michel e os diários que escrevia, ela devolvia a elas seus nomes. Nomeava cada uma como se acendesse uma vela. Para que nenhuma luz se perdesse totalmente.

 

Marie olhava as paredes da abadia e compreendia que os muros mudam de forma, mas continuam sendo muros. Em toda geração, há mulheres que os escalam, que os atravessam, que os desenham com poesia. Mas raras são as que têm seus nomes inscritos nas placas de bronze. Porque o mundo, ainda hoje, desconfia das mãos femininas que criam, que pensam, que lideram, que ousam.

 

E ainda assim, elas continuam.

Como Camille, que esculpia sombras e luz.

Como Louise, que escrevia com pólvora.

Como Marie, que costura suas dores com palavras e espera, entre as pedras de Saint-Michel, que algum dia outra mulher leia seu diário e sinta que não está sozinha.

 

 

Fragmento do meu Livro As Cartas de Saint-Michel (em construção)

 

Maria
Enviado por Maria em 22/06/2025
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